Há quem goste delas curtas, há quem as aprecie mais longas, mas para nós o tamanho não importa, uma história merece sempre ser contada.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Resolução para 2010.

Acabar a saga "O Inverno e a Aldeia" e se possível escrever aí mais uma historieta. Ou duas, vá...

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Queridos Amigos

Queridos amigos, colegas de escrita e eu própria
O que é que se passa connosco?
Possuídos pelo espírito que tomou conta de S.Vicente da Lua, ou simplesmente cansados e engolidos pela rotina que nos arranca a inspiração?
Aguardo melhores dias para todos.
A vossa estimada, maravilhosa, sensual e carismática
Anacê
Cascais, 22 de Dezembro do ano de 2009

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

O Inverno e a Aldeia 26

- A esta hora Sr. Prior?
Os olhos de Joana brilhavam de surpresa.
- Como me disseste que os ruídos chegavam ao anoitecer decidi vir, para que não os escutasses sozinha. Juntos vamos perceber o que se passa realmente, que ruídos são esses à beira da tua casa.
Joana não sabia se havia de rir, ou chorar de agradecimento. O Prior levou a mão ao bolso, acariciando a pequena adaga que trouxera da capela que abraçava o rosário meio escondido nessa parte da batina.
- Tem sido tão bom para mim…
- Porque é que não desligas as lamparinas? Quem quer que venha não tem que nos ver aqui dentro a espreitar a janela.
- Claro, claro. Eu nunca espreitei, pois morro de medo de ver alguma coisa que não quero. No fundo, no fundo, por pura falta de coragem.
As palmas das mãos de Alberto estavam húmidas de pânico. Sabia que aquelas alucinações eram a prova viva que Joana estava possessa, que residia nela o mal de todo S. Vicente da Lua. Ele sabia-o bem dentro de si, mas por outro lado quando a via assim, desprovida de chagas, de rubores, de malícia, sentia que estava perante a mulher mais pura da aldeia. Pureza de alma. Enquanto a via desligar as lamparinas com uma fé cega no seu conselho desejava estar errado, desejava ouvir realmente as cantilenas que ela dizia escutar. Rezou com fervor para que começassem os gritos no escuro, as velas acesas lá fora, pois assim não teria que usar aquela adaga que lhe ardia como fogo entre os dedos.
Ao longe, abrigado do frio por uma grossa samarra de lã grossa, Júlio olhou mais uma vez a casa onde o esperava o filho e tremeu quando viu a fraca luz que a iluminava apagar-se, deixando tudo em seu redor envolto na mais completa bruma. Estugou o passo da burra e sentiu que a sua própria vida dependeria da velocidade a que conseguisse alcançar a aldeia.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O Inverno e a Aldeia.

Ao meu amado filho, ainda por nascer.
Meu filho, após uma longa e solitária viagem de três dias, a pé por entre os montes e as matas que os habitam, eis que me encontro na serra sobranceira a S. Vicente. Quero genuinamente sentir-me feliz, alegre e revigorado pela visão da minha terra, da nossa terra, aquela onde conheci a tua mãe e onde foste concebido mas não sinto nada. Nada. Será talvez porque, na verdade, não vejo o casario? Todas as casas, desde as mais próximas aos campos até às ladeiras à Igreja estão perdidas no meio do nevoeiro cerrado. Só se vê a torre da Igreja, como se o Senhor estivesse a assistir, impávido e sereno, ao que acontece dentro do negrume. Será possível que Deus nos tenha abandonado?
Nem sei porquê esta interrogação que me invade. Mas sinto-me vazio, frio, gelado por dentro. O meu coração, que me encheu de força para encontrar o meu filho, está agora parado. Que coisa é esta que me invade? Onde foi a alegria que trouxe até aqui? E porque não sou capaz de entrar na minha terra, no pedaço de mundo que viu nascer? O silêncio está por todo o lado. Não se ouve nada. Nem pessoas, nem os cães, nem os mugidos das vacas e os seus badalos, nem o sino da Igreja, nem as crianças a correr pelo empedrado das ruas, nem os pássaros a piar ao final da tarde. Mas o que mais me impressiona é esta indiferença ao facto de estar a pouca distância de ti, meu filho. A minha mente é constantemente invadida por imagens de dor e sofrimento. Não que tu estejas a sofrer mas que... sejas tu o causador do desespero. Vejo imagens de um homem, adulto, que ri enquanto bate e humilha outros homens e mulheres. Ele ri e eu oiço o seu riso, o seu gargalhar ecoa na minha cabeça e eu sei, eu sei que esse homem é o meu filho. Esse homem serás tu.
Mas que pai serei eu, que homem cria o seu filho para que ele se torne no canalha que me invade a mente? Onde se esconderão os meus erros? Falho na minha missão de pai mesmo antes do teu nascimento, meu filho. Perdoa-me, se puderes. E este maldito vento que se faz sentir no monte onde me encontro. Maldito que vem das partes do nevoeiro e parece trazer as preces da gente da terra, as mesmas preces que se ouvem nos funerais, lentas, murmuradas que parecem empurrar o morto para além dos sete palmos da cova que lhe talharam. Sempre me arrepiou esse lamurio das carpideiras que fazem da dor dos outros o seu entretém nas noites passadas sentadas nos frios bancos de pedra da casa mortuária da Igreja, enquanto ensaiam choros fingidos e gritos de dor. Cada uma na sua vez, encadeadas como num coro. São esses os sons que trás o vento, meu filho. E, como sempre, a minha pele arrepia-se de angústia.
A noite cai. É hora de me preparar para a caminhada que me levará a sentir-te na barriga da tua mãe. E é curioso que seja a noite a trazer-me uma alegria. Vejo ao longe uma luz, no meio do nevoeiro! Uma luz que parece ténue mas que deve ser forte, para conseguir trespassar o espectro negro que rodeia a aldeia. Uma luz que ondula, como as árvores ao vento, como se estivesse a assinalar onde tu estás, meu filho. Conheço bem a aldeia, e ali, de onde a luz parece chamar-me é a casa da tua mãe, Joana. Bem perto fica a torre da Igreja, solene, alta, distante. Dela só me chega angústia.
Se eu perecer, rogo a quem encontrar a minha velha carcaça que entregue esta carta ao meu filho, o filho de Júlio e Joana de S. Vicente da Lua.
Este episódio é dedicado à Nuvem. Pela sua incansável fidelidade, obrigado!
(Já podes ir falar com o Pai Natal!)

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia.

Pai nosso que estáis nos Céus.
A força da fé no Senhor me dê forças para as provações que terei ainda de passar mas feliz daquele que sofre por Deus, como ele por nós sofreu o martírio da crucificação. Porque hoje estive no covil do mal. As mãos doem e tremem ao escrever estas letras, como se tivessem sido queimadas pelo fogo do próprio Inferno. Enquanto rezava as orações de mãos dadas com aquela mulher, as mãos ardiam num fogo invisível. Ela não tem a marca do mal nas mãos, confirmei, antes a maldade está dentro dela. Vive dentro dela, alimenta-se dela e através dela se espalha aos corações das minhas ovelhas.
Confesso, meu Deus, que rezava para que me désseis força para suportar a dor daquele fogo que me atravessava através das minhas já frágeis mãos. Rezava por mim e não para combater aquele terrível mal. Sucumbi perante a violência daquela força. As vozes das almas condenadas flagelaram a minha mente, como sempre o fazem quando abandono a Igreja. Malditos sejam os inimigos do senhor. Este mal que nos ataca é enorme. Invadiu já a Casa do Senhor mas o covil fica naquela casa. A puta do Diabo chorou lágrimas de dissimulação mas eu bem vi o seu olhar vazio, as sombras a olharem-me por trás dos olhos dela. As suas mãos eram frias, como as de um falecido após a noite de velório em cima da pedra mortuária. Frias mas ao mesmo tempo queimavam como um ferro em brasa. São estas as contradições e a perfídia de Lúcifer.
O povo apercebe-se já do mal que emana daquela casa. Fazem-se vigílias e procissões em redor dela. Os cânticos dos vossos servos entoam agora pela noite. A luz da casa apaga-se mas, sem luz lá dentro, os homens quebram na sua determinação. Dizem que ela silva, como uma serpente, que leva a noite, que se apagam as estrelas, que sentem um frio no peito como se o coração tivesse parado, que se sentem vazios por dentro e temem. Temem mais ao Diabo que a Deus.
Mas a raíz de todo o Mal está dentro dela. Enquanto fervorosamente rezava por mim, pela minha salvação, consegui ouvir a sua voz dentro de mim. "Temes-me já e ainda nem nasci. Mas nada temas, serás o meu escravo assim que eu nascer. Verás todo o teu rebanho a perecer perante a minha força e, mesmo assim, servir-me-ás!". Estas palavras ressoavam por todos os meus ossos, toda a minha carne, corpo de Deus. E o riso, o riso que gela e nos rouba a vontade, a força nas pernas e oprime o peito. Não estava preparado Senhor para tamanha força. Hoje mesmo apertarei ainda mais o silício que trago na perna para que sangre o Sangue Divino através do qual purificarei as almas mais preversas!
Aquela criança é Lúcifer. O mal personificado puro e frágil. Tem de morrer! Pelo meu punho, pelo punho de Deus! Deus Pai Todo-Poderoso que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós.
(Diário do Vigário, 22 de Novembro de 1951)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia.

Hospital Psiquiátrico de São João de Deus
Serviço de Internamento de Doentes Agudos
Diário Clínico
10/12/1952: O doente apresenta-se sem alterações do seu estado. Mantém-se em mutismo, não colabora nos cuidados. É extremamente agressivo e violento para com os profissionais de saúde que considera como inimigos. Verbaliza apenas quando "ataca" o pessoal. Passo a citar:
"Cambada de filhos da puta nojentos haveis de morrer nos fogos dos infernos de onde saíram"
"Nunca me vergarão, cabrões"
"Matem-me de uma vez seus filhos de uma cabra sarnenta"
A um dos enfermeiros arrancou uma orelha com uma dentada. Mantém-se contido no leito com correias de couro no tórax e membros inferiores e ainda com o colete de forças vestido.
Foi aplicado o protocolo terapêutico de electrochoques diários, sem resultados visíveis. No final de cada sessão o doente apresenta-se prostrado, sonolento e aparentemente calmo. Neste curto período de tempo verbaliza repetidamente a seguinte frase: "Hei-de regressar para te salvar.". Não foi possível estabelecer o significado dessas palavras. Contudo o doente regressa aos seus delírios e confabulações logo que retoma a plena consciência. Não há registo de qualquer outro esquizofrénico que seja tão refractário ao tratamento. O doente parece adaptar-se a cada tratamento, a ponto de, actualmente não parecer sofrer qualquer tipo de desconforto com as descargas eléctricas cada vez mais potentes. Chega a parecer sobrenatural.
A ferida no deltóide mantém-se por cicatrizar. Após uma semana a receber injecções de penicilina (2.400.000 unidades), a ferida mantém sinais inflamatórios exuberantes com expulsão de pus. Aparentemente sem dor, o paciente parece estar infectado com qualquer tipo de bactéria resistente à penicilina, o que será caso único na literatura médica conhecida. Mantém-se tratamento. O doente apresenta agora traumatismos múltiplos no corpo. Na sessão de tratamento de ontem, o doente conseguiu libertar-se do colete de contenção e tentou uma fuga, atirando-se pela janela da sala de tratamentos. Foi perseguido e apanhado já fora dos muros do hospital pelos enfermeiros que assistiram à tentativa de fuga. Na ânsia de escapar, correu de encontro ao portão e embateu com a cabeça no mesmo. Perdeu a consciência por traumatismo craneo-encefálico que aguarda evolução. Mantém as correias de imobilização no leito. Mantém esquema de electrochoques. O doente é considerado perigoso para a sociedade e se este esquema de tratamento não for bem sucedido pondera-se a sua institucionalização em hospício com medidas de contenção permanentes.
O médico psiquiatra,
(assinatura ilegível)

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia 22

S. Vicente da Lua, 22 de Novembro de 1951
Página número 29 do Diário Pessoal de Joana Espinho

Querido Diário
Hoje chorei muito. Chorei como não chorava desde que me lembro. O vigário apareceu aqui ontem à noite e cedi ao seu abraço misericordioso. É o único que não me vira a cara na aldeia, que não me julga, quando é certo que cometi mais do que um pecado capital.
Todo o ambiente estranho que nos envolveu na capela se dissipou aqui em casa. Orámos com muito fervor, lemos passagens da Bíblia que pareciam escritas para mim, conversámos sobre o sentido das coisas e o Vigário pareceu mais sereno do que ontem de manhã. Pediu-me para ver as palmas das mãos, mas nada encontrou. Não lhe falei da estranha marca sobre o meu ventre que aparece e desaparece ao sabor do dia e da noite.
Deixou-me Água Benta para que me benzesse todas as manhãs e assim o vou fazer, bem como passá-la sobre a marca rosada no bucho, pois sei que nesta altura apenas Ele me pode valer.
Hoje os meus alunos pareceram menos cruéis e, apesar de no caminho de regresso a casa, alguns deles me terem seguido e jogado pedras, foram menos os que participaram no “linchamento”.
Estou convencida de que ouvem em casa aquilo que me gritam pelo caminho e certa de que quando me chamam puta nem sabem o que essa palavra quer dizer.
Segurei o meu rosário com todas as forças e caminhei de cabeça erguida, o que pareceu deixá-los um pouco atordoados, habituados como estão a ver-me gritar e perder as estribeiras.
Pensei muito no Júlio e em como seria bom tê-lo aqui perto de mim, mas não posso, não devo ceder à tentação. Para o bem e para o mal já tomei a minha decisão, vou entregar esta criança quando ela vir a luz do dia. Certa de que será mais feliz longe daqui, deste negrume que nos afunda a todos.
Ainda não falei com o Vigário sobre esta minha decisão. Talvez ele me possa ajudar se for um menino, dá-lo para os padres criarem no Mosteiro das Levadas. Se for menina eu mesma a entregarei num convento e quem sabe não pedirei para ficar também eu em voto de clausura.
Enquanto te escrevo escuto os ruídos lá fora e sei que vou passar mais uma noite em claro, possessa de horror. As cantilenas e preces na língua que desconheço parecem munidas de mais vozes a cada noite que passa. Quero encher-me de coragem para espreitar lá para fora, mas ainda não consigo. Chego a temer pela minha vida. Sinto que tudo piora todos os dias. Tudo menos a minha fé que foi resgatada dos confins de mim mesma pelo meu santo Vigário.
Vou ficar por aqui, pois as velas pouca serventia me dão. Esmorecem e apagam-se sempre à mesma hora. À hora dos cânticos. Sei que eles se aproximam, pois as velas já pouca chama queimam. Amanhã volto a ti querido Diário, até lá rezo para passar desta noite.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia.

(Correspondência nunca expedida.)
Penhas da Saudade, 21 de Novembro de 1951
Minha querida e Santa Mãezinha,
Espero que estas breves letras a encontrem de boa saúde, a mesma com que a deixei quando parti nesta viagem que agora me parece tresloucada. Quero que saiba o que se está a passar porque não estou certo que algum dia vá regressar o mesmo Júlio que viu partir. Cheguei ontem às Penhas da Saúde a não são bons os augúrio que vêm de S. Vicente. O velho comboio que fazia a ligação até ao apeadeiro de S. Vicente já não sai da barracão onde se resguarda e os homens das Penhas não vão até S. Vicente. Dizem que o mau-olhado paira sobre as casas e os campos da aldeia. Alguns dos jovens com o sangue mais quente aventuraram-se até ao campos dos homens da aldeia mas não foram capazes de lá entrar. Dizem que o nevoeiro é cerrado, que não se vê vivalma. Os poucos que se atreveram a entrar nos domínios do nevoeiro perderam-se e voltaram mudos para as Penhas. Ninguém fala de S. Vicente, é como se a aldeia tivesse deixado de existir. Ninguém está disposto a ajudar-me a atravessar os montes até chegar ao meu destino.
Na tasca das Penhas conta-se a história de um homem louco e bêbado que passou por aqui, vindo de S. Vicente. Um homem que contou histórias de morte e lutas. Um homem que falava no Diabo como se o tivesse visto com os seus próprios olhos. "Um maluco!" disseram-me, mas o certo é que este homem foi corrido das Penhas sem que ninguém, ninguém lhe tenha dado uma côdea de pão. Tentei identificar o homem, pois loucos é coisa que nunca houve em S. Vicente mas nada mais consegui que louco, desdentado, sujo, ladrão de chouriços e do fumeiro que entrava à socapa nas casas abertas. Há quem jure que esse homem trazia as mãos manchadas de sangue, que estava possuído. Também me contaram de como o levaram ao padre das Penhas, para que o benzesse, e de como ele silvou como uma serpente e cuspiu para o padre. Deram-lhe uma tareia e abandonaram-no no monte.
Mas, minha querida mãe, a razão porque lhe escrevo é outra. Desde que cheguei aqui que a dúvida me assalta. Serei covarde talvez mas, que faço eu? Que loucura é esta que me preparo para fazer? Deixar Lisboa, a minha casa, o meu trabalho? Atrás de um filho que eu nem sequer sei se existe? Atrás de um filho que pode até nem ser meu? Afinal de contas, há quanto tempo saí eu de S. Vicente? Tanto quanto julgo saber, Joana esteve sempre só durante esse tempo. E se procurou outro homem para se aquecer nas noites frias do monte? Eu bem senti o calor daquela mulher, minha mãe. Joana não é mulher para ficar sem homem durante muito tempo. Pouco tempo depois de nos namorarmos já estava na cama dela, ela por cima de mim, meneando-se, pedindo-me que lhe lambesse as tetas e lambendo-me o peito. Perdoe-me a franqueza minha mãe, mas uma mulher honrada não tem estes comportamentos. Pensei que estava apaixonado mas agora já não sei... Mas, acima de todas estas dúvidas, está um sentimento. Uma espécie de vazio no estômago, um arrepio na espinha que me atormenta desde que pus pé nas Penhas. Um sentimento que este filho, o meu filho, será também a minha desgraça.
Que Deus a tenha em Eterno Descanso minha mãe. Amanhã parto em direcção aos montes das Penhas. Que estas palavras, estas dúvidas que me ensombram a alma a encontrem no seu lugar no Céu. Que a sua sabedoria me guie na hora em que tenha que decidir.
Para sempre saudoso, o seu filho
Júlio.



O Inverno e a Aldeia 20

Correspondência Pessoal
S. Vicente da Lua 21 de Novembro 1951

Meu caro, mais uma vez lhe escrevo na qualidade de amigo e penso que não será preciso pedir-lhe que guarde as minhas missivas como a um segredo de confissão.
Hoje procurou-me uma jovem cheia de dor, recentemente chegada à aldeia, sem família por perto e com um fardo demasiado grande para carregar apenas com as suas mãos. Não deixou de me comover a sua busca de conforto precisamente aqui, na Casa do Senhor. Pois numa altura em que todos os fiéis parecem correr na direcção oposta à minha, esta jovem buscou-me, procurando respostas, compreensão.
Carrega no ventre um filho cujo pai não quis nomear e achei por bem não insistir em querer chamá-lo à razão, pois senti-a irredutível nesse ponto. Como se quisesse proteger o pai da criança do mesmo infortúnio que parece tê-la atingido.
Mas o que me levou a escrever-lhe não foi a história desta jovem e a sua criança, foi sim a certeza mais do que absoluta que estive perante a presença de uma força cheia do mais negro que há.
No frio da capela (já lhe disse que o Fernando Lenhador deixou de me fornecer de lenha) enquanto conversávamos de mãos dadas, senti que as suas mãos ardiam. Não a quentura usual da pele, mas mais. Um ferver, uma labareda, um calor quase insuportável que me obrigou a soltar-me sufocando um grito de dor. Ao olhar as palmas daquelas mãos brancas de leite duas enormes chagas rosadas e salpicadas de negro cobriam toda a sua superfície.
Ao perguntar-lhe se as tinha há muito ela fingiu-se desentendida, que não as via, que nada sentia. Mas como? Perguntei, se elas estão aqui, se queimam?
O seu olhar meio tolo fez com que acreditasse que de facto não as via. Que só aos meus olhos surgiam aquelas hediondas chagas. Na mão esquerda uma cruz invertida, na mão direita três números 6 seguidos formando o número da besta.
Ao pedir-lhe que mergulhasse as mãos em água benta, assentiu pacificamente e quando emergiram do líquido que purifica tudo desaparecera. Tudo menos o negrume que se apoderara do seu olhar.
Foi como se tudo tivesse passado da pele para os recantos escondidos da sua alma. Aquele olhar que me fitava num desafio, chamando-me para dentro de si, deixou-me muito abalado e de nada lhe servi. Nenhuma ajuda lhe prestei.
Sinto-me o pior dos descrentes. Se esta jovem tem alguma espécie de demónio dentro de si, cabia-me a mim apaziguá-la, mas emudeci, aterrorizado. E na superfície líquida do seu olhar o lado branco ficou negro como breu e a sua voz soou grossa como a noite catapultando-me para a mais vil das cobardias que me levou a expulsá-la da casa do Senhor.
Esta noite mesmo terei que me redimir. Procurarei a jovem Joana e juntos descobriremos uma solução.
De qualquer forma gostaria de dar inicio aos procedimentos para poder exorcizar esta alma. Junto seguirá um pedido de autorização que espero que reencaminhe a quem de direito. Mas desde já lhe desabafo que com, ou sem autorização superior, tenciono fazer tudo o que estiver ao meu alcance para libertar esta jovem e a criança que carrega, do domínio do mal.
Seu servo e amigo
Alberto

domingo, 15 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia 19

Meu Querido Diário
Depois de uns dias de indisposição que me atiraram à cama, regressei à escola. Escondi o melhor que pude o ventre que me encurta já os vestidos e de peito erguido enfrentei os olhares a que já me acostumei.
Todas as noites rezo por uma solução, Deus me perdoe, por um desfecho natural a este meu estado. Já pensei pedir à tia Maria das Dores que me desse a tragar uma das suas mezinhas, mas falta-me a coragem e penso ir já muito adiantada no tempo para poder desmanchar o que fiz.
Os meus alunos falam de mim de cada vez que me viro para a ardósia e sinto os olhares dos habitantes cada vez mais enraivecidos na minha direcção.
Podia jurar que me fazem uma espécie de vigília durante a noite, pois escuto cantilenas bem próximas da minha porta. A falta de coragem leva-me a fechar todas as janelas e esconder-me debaixo das cobertas, por isso ainda não pude confirmar as minhas suspeitas. Mas quando amanhece encontro rastos de cera e vestígios de velas ardidas espalhadas em redor da casa.
Que mal me quer esta gente sisuda e como estou arrependida por ter trilhado o caminho que me trouxe aqui.
O meu amado continua longe e sem saber que espero um filho, não tenho amigos, não tenho posses além do pouco que ganho na escola e não sei que passo dar além de um pé à frente do outro todos os dias.
As forças faltam-me. Amanhã falarei com o Vigário. Não sei porquê, mas alguma coisa me diz que é nele que devo buscar conforto...

20 de Novembro de 1951

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia.

(Documento nº 657, Tipo: Arquivo Liturgico, homilia proferida em 10 de Novembro de 1951)

Corações ao alto! Nosso coração está em Deus! Seja feita a sua vontade!
Fieis! A nossa terra foi envolta por uma névoa de maldade! Não vos enganeis, pois é o mal que nos envolve silenciosamente! À data da minha chegada, o rebanho era próspero e feliz e caminhava nos trilhos de Deus, mas hoje o rebanho está perdido... Procurei no meu coração a razão da perdição dos servos de Deus, julguei ser eu a razão da debandada dos nossos irmãos para a vida desregrada da grande cidade. Mas não! O Senhor é meu Pastor e mostrou-me o caminho...
Esta semana visitei vossas casas, uma a uma. Assisti ao sofrimento que trespassa o coração das gentes da nossa terra, o frio que envolve todas as casas, a morte que tocou já quase todas as famílias da nossa aldeia. Mas uma casa, apenas uma casa não estava cheia com este sofrimento. Nesta casa havia música... MÚSICA POR DEUS!! Quem se atreveria a trazer para este nicho de santidade e devoção um instrumento de Satã? A purificação dos pecados vem pelo sofrimento, pela abstinência, pelo sacrifício! Apagai a réstia de alegria que viver nos vossos corações pois adivinham-se tempos de abnegação... Onde estão os nossos irmãos desaparecidos misteriosamente na floresta? Onde estão o Manuel, o António, o Joaquim, o Ernesto? Não há notícia de vida mas não há notícia de morte. Em que limbo estarão as suas almas perdidas? Aqueles que morrem em pecado sem culpa, vaguearão para todo o sempre nos corredores do limbo de Nosso Senhor, Nosso Deus. Mas nessa casa havia algo mais. Algo mais forte, mais poderoso, mais insidioso que a canção de Lúcifer debitada pela voz mecânica... Não... senti algo. Algo me possuiu como se eu fosse uma marioneta. Era uma voz estridente que ria como louca. Dizia-me "sim Vigário... estás na casa do Escolhido... ele vem a caminho para tomar todas as almas do teu rebanho..." e uma criança chorava, chorava mas depois ria, ria estridentemente!! Eu vos digo, vem aí o Maldito, o Portador da Chave do Inferno, o Príncipe do Apocalipse!!!
Pensem, pensem em quando a desgraça se abateu sobre as nossas casas... Quem chegou, de novo, a esta bendita terra? Foi ela que trouxe consigo o nevoeiro, o frio, a morte... Ela é a Mãe do Maldito!! Ela vai parir o mal aqui, na nossa bendita terra!! Eu sei! Eu vi com os meus olhos iluminados por Deus, vi-a a parir o mal em forma de criança, olhos deitando chispas de ódio, uma criança que não chora, só ri! E o seu riso enlouquece quem o ouvir e obriga as gentes a matar a gente do seu próprio sangue. Eu lutei com ela nesse dia, naquela casa. Mas ganhei! Eu que sou o arauto da boa-nova, sou a Espada de Fogo na mão direita de Deus, sou o Arcanjo em carne mortal de homem. Eu fui o enviado para lutar com o Maldito. A Lei de Moisés é clara: a mulher adúltera será executada por lapidação!! Essa mulher traiu a Deus concebendo uma criança com o Diabo, uma criança sem pai, sem alma, sem Deus. Marcharemos para o seu covil e apedrejaremos a traidora até à morte. Eu atirarei a primeira pedra.

domingo, 8 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia.

HOSPITAL PSIQUIÁTICO SÃO JOÃO DE DEUS

SERVIÇO DE INTERNAMENTO DE DOENTES AGUDOS
Relatório de Admissão.

NOME DO DOENTE: Não identificado
IDADE: não identificada

Doente do sexo masculino, idade não especificada presumivelmente situada entre os 25 e os 30 anos. Não foi possível colher antecedentes clínicos e familiares. Os exames clínicos efectuados não revelaram qualquer alteração.
Trazido ao hospital por mau estado geral, mal nutrição e alterações do comportamento. À entrada apresentava-se em mutismo, com comportamentos de agressividade perante os profissionais de saúde. Foram tomadas medidas de contenção físicas (camisa de forças e correias de contenção no leito) e foi medicado com terapêutica ansiolítica e neuroléptica (haloperidol).
Exame físico: cuidados de higiene precários. Apresenta-se globalmente sujo, cabelo muito sujo e emaranhado (manda-se rapar o couro cabeludo), as unha estão sujas de terra, os dentes apresentam-se cobertos por placa bacteriana com alguns dentes ausentes e muitos fracturados. Apresenta equimoses disseminadas pelo tronco e abdómen e também nas pernas. Presume-se que causadas por agressão. A diferente coloração entre elas sugere que o doente foi sujeito a traumatismos vário em diferentes momentos temporais, de forma continuada. Apresenta-se emagrecido, o cabelo quebradiço. Presume-se algum tipo de deficiência nutricional. Foi encontrado em muito mau estado junto à casa de um lavrador e foi transportado até ao hospital. Foram referidos comportamentos agressivos e um discurso de repetição: "Nunca me irão apanhar vivo, nunca me irão apanhar vivo." (Fim de citação). Neste momento está em recusa de comunicação, não fala, não olha para o interlocutor.
Apresenta uma única ferida recente, ainda em fase de cicatrização. Trata-se de uma ferida compatível com mordida de animal no músculo trapézio à direita. Prescreve-se a vacina anti-tetânica e penso diário.
A primeira observação do doente, juntamente com os relatos dos acompanhantes levantam desde já algumas impressões diagnósticas, a saber:
Esquizofrenia?
Psicose Maniaco-Depressiva?
Delírio Persecutório?
Prescreve-se:
Contenção física no leito
Terapia de Electrochoques
O Médico Psiquiatra
(assinatura ilegível)
HPSJD em 5 de Dezembro de 1952

sábado, 7 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia 16

17 de Novembro, 1952

Minha querida Conceição, só te rogo uma coisa: não voltes. Não olhes para trás. Não sei se chegam à capital notícias desta terra por Deus esquecida, mas não devem chegar. Esta aldeia está a deixar de existir aos poucos, e não estranhes se um dia deixares de receber notícias minhas. Faço as minhas orações todos os dias e estou em paz com o Senhor. A única coisa que me apoquenta é o não mais me confessar. Isso deve ser uma surpresa para ti, pois desde a primeira eucaristia que o fazia todas as semanas. Mas deste que o outro padre foi substituído, que não sei quem está por trás da cortina do confessionário.

Sei sim, filha, que Deus não é. Por isso, agora resolvo os meus pecados directamente com Ele, em oração, na esperança que me perdoe.
Deves estar-te a perguntar se ainda vou à missa. Vou, querida, da casa do Senhor não me posso afastar. Mas digo-te aqui, nesta missiva que só tem a ti como destino, que não sou capaz de olhar para o altar. Olho para a Santa Cruz e para a Virgem acima, mas para o altar, não.
E recebo a hóstia de olhos fechados. Quem ainda vai à missa faz o mesmo.

Bem, minha querida, vou-te deixar em paz com estes achaques de velha da aldeia, que nada disso deve interessar-te. Tenho de ir visitar a prima Joana e levar-lhe uma mezinha, que ela, e isso é um segredo que te conto porque sei da vossa amizade, está de esperanças. Sabes que não sou como as outras mulheres cá do sítio e não atiro a primeira pedra. Para mim, esta criança é filha de um amor honrado e abençoado por Deus, embora não consagrado. Mas é uma questão de tempo, tenho a certeza.
Já escrevi ao Júlio e espero que ele chegue antes que o ventre da moça se faça notar.
Tenho medo que ele não tenha recebido a carta, pois já recebi duas tuas depois de lhe ter escrito a ele.
Mas Deus vai trazê-lo a tempo de evitar os falatórios.

Quanto ao Joaquim, meu amor, acho que o viram para as bandas de Nossa Senhora dos Pinhais, e de Obradeiro. O que se diz dele prefiro não escrever aqui. Tenho a certeza de que são boatos.
Afinal o Joaquim desapareceu antes de o Inverno chegar tão cedo a esta aldeia.

Com muito amor, da tua tia que te roga: não voltes.
Não voltes nem por amor.

Maria das Dores

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia 15

Lisboa, 1 de Novembro de 1952
Documento nº42 – Caixa 17 – Correspondência Pessoal

Querida tia
Espero que esta carta te encontre de boa saúde, só Deus sabe como me custa estar afastada de ti, afinal de contas foste tu que me criaste de gaiata, desde a morte dos paizinhos e até hoje não conhecia a distância entre nós.
Gostava de te dizer que tem sido fácil a vida aqui na capital, mas não posso, não consigo mentir-te e mesmo que tentasse, certamente me lerias nas entrelinhas e perceberias que trouxe de S. Vicente a mágoa que quis abandonar.
Comigo veio o sonho dos palcos, mas veio também a culpa de ter deixado para trás os que me queriam bem, tu sabes de quem falo...
Ele deixou de dar resposta às minhas cartas e o único medo que tenho no coração é tê-lo ferido de morte, mas tive que o fazer. Conheces-me, sabes que não nasci para ficar na sombra de um casamento e o ensino há muito que não me trazia felicidade. Se não tentasse definharia em S. Vicente e comigo definharia ele tentando fazer-me feliz.

Mas deixemo-nos de lamúrias que a vida não é dos queixosos, amanhã vou prestar provas para uma revista. Se gostarem de mim participarei num papel pequeno, mas ao lado dos grandes. Reza por mim tia, pode bem ser o primeiro passo de muitos que se seguirão e se tudo correr bem quem sabe não te mando vir. Já nos imaginaste de braço dado pelos jardins da cidade como duas senhoras de bem?
Vivo num quarto pequeno em casa de uma viúva mal humorada e com buço, mas sei que em breve a minha sorte vai mudar e não precisarei de um casamento conveniente para me sustentar. Eu vou ser dona de mim.
Se as coisas aí na aldeia continuarem pesadas como o manto negro do infortúnio vem querida tia, não hesites em deixar S. Vicente para trás. Percebi há muito que essa aldeia nada faz além de nos botar raízes de tristeza nos pés e de nos amarrar a uma vida de suspiros.

Da tua sobrinha que te quer bem
Maria da Conceição

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Alteração à nossa programação...

Do "blogonovelencontro" surgiram algumas ideias novas para a história "O Inverno e a Aldeia". Pela primeira vez na história do blog teremos uma história pensada e discutida pelos autores, em vez do normal "jogo do empurra" em que cada um tentava surpreender os outros com voltas e acontecimentos inesperados no enredo. Assim, os capítulos já escritos da história serão revisitados e alterados para que esta história (que julgamos com muito potencial!) ganhe a qualidade que pretendemos para ela. Seremos capazes? Não sabemos, mas morreremos a tentar!!!
Estejam atentos...

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Pausa Criativa.

Os autores deste blog informam os leitores que a história "O Inverno e a Aldeia" será retomada após tertúlia criativa entre os três. Para que leiam histórias com (ainda mais) qualidade!
Passem bem!

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O Inverno e a Aldeia 14

(PRIORITÁRIO)
Aldeia de S. Vicente da Lua, 1 de Novembro do ano de 1951 de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Reparo na data que acabei de escrever e um sorriso triste aflora-me os lábios. O Dia dos Fiéis Defuntos. Ele chegou finalmente e com ele trouxe a desdita. Não tenho dúvidas que estou perante um servo da Besta que com ela trata directamente. Curiosamente ainda não me maltratou. Pelo contrário, tem sido cordial, dentro da imensa maldade que brota dos seus olhos vazios. Não estou preso, não imobilizado. Permite-me que ande pela casa da Igreja livremente mas um coro de vozes sobrepostas invade a minha cabeça assim que coloco pé fora, no adro. O volume e a cólera da sua voz de mil almas condenadas aumenta à medida que me afasto da porta. Ao fim de alguns metros a violência do coro diabólico é tanta que me prostro no chão e rastejo de volta à igreja. Só assim me encontro seguro. É irónico como esta força negra me arrasta para o cativeiro e que este cativeiro é a Casa de Deus. E esta é a prova da força que se apodera de mim. Algo que é capaz de viver dentro da Casa do Senhor.
Sei o que está a fazer ao meu rebanho. Como um lobo, alimenta-se dos meus fieis e outros mata apenas por prazer. Sei-o porque as sombras no seu olhar parecem plantar imagens na minha mente. Vejo as portas abertas com os crucifixos voltados, os corpos mutilados no chão frio de pedra e no meio da rua. Alguns deles aparecem-me a sacudir-se involuntariamente. Sofrem mesmo depois da Ceifeira chegar. Oiço os seus gritos de terror, a sua súplica por uma morte mesericordiosa e rápida, enquanto as suas carnes são rasgadas por eles. Rezam a Deus Pai Todo Poderoso enquanto são consumidos pelo Renegado. É essa a força da fé em Deus que vive nas almas dos meus fiéis. São misteriosos os desígnios do Senhor.
Contudo não tenho medo. Não me cabe a mim questionar os desígnios de Deus. "O Senhor é meu Pastor e nada me faltará". Não tenho medo. Estou pronto para cumprir o meu destino.
"Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós."
(Folha 1ª do diário do Vigário)

O Inverno e a Aldeia 13

(correspondência nunca expedida. Página 1)
Ao meu filho, ainda por nascer.
Querido filho.
Chamo-te filho porque desejo com todo o meu ser que sejas um rapaz! Nada me faria mais feliz que um filho varão que perpetue a linhagem da nossa família. Dizem que ninguém é eterno mas eu digo que serei eterno através dos meus filhos e netos, e dos seus filhos e netos. Porque no leito de morte de um Homem não cabem as riquezas mundanas, só os nossos filhos podem ser a nossa maior riqueza.
Meu querido filho, no momento em que te escrevo estas palavras parto de Lisboa, da Estação de Sta. Apolónia, em direcção a vós, meu filho e minha amada Joana, tua mãe. Sinto as entranhas revolvidas pela ansiedade. Sei da tua existência apenas porque, com o estranho silêncio que chega de S. Vicente, a tia Micas (que sabia já através de conversas entre comadres) me veio dizer que devia procurar a tua mãe. Que ela está grávida! Grávida meu Deus!!
Mas há outra coisa que me alarma: o silêncio... Porque é que todos os nossos conterrâneos em Lisboa deixaram de ter notícias de S. Vicente? Porque é que o comboio deixou de parar no apeadeiro, para onde foram o João Maquinista e o Manuel Pica que sempre guardaram e trabalharam na estação? O filho dos Alvares não mais deu notícias... Sinto que há algo de maléfico que paira sobre S. Vicente e temo pela vossa segurança. A minha jornada começa agora. Amanhã chegarei às Penhas da Saudade e depois percorrerei os 70 km que me separam de vós. Através dos montes. A minha vontade é férrea, irredutível mas serão muitos dias a pé por entre os bosques e as falésias, no terreno dos lobos. Vou preparado o melhor que posso e sei e hoje amaldiçoo o dia em que me fiz doente para não ir à tropa. Deus sabe o que gostaria de ter treinado no meio do mato, as técnicas de sobrevivência e o manuseamento de armas. Sim, estou armado.
Escrever-te-ei todos os dias da minha viagem de reencontro convosco e guardarei as cartas junto ao meu coração.
Se eu perecer rogo a quem encontrar a minha velha carcaça roída pelos animais do monte que as façam chegar ao meu filho. O filho de Júlio e Joana de S. Vicente da Lua.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O Inverno e a Aldeia 12

(Documento nº1, caixa 1, registo de investigação policial)

RELATÓRIO INICIAL DE INVESTIGAÇÃO
LOCAL: Apartamento sito no 4º andar do prédio nº 1 da Marginal de Cascais
IDENTIFICAÇÃO DA VÍTIMA: Maria da Conceição Felismino
DATA: 10 de Outubro de 1973
DESCRIÇÃO DA CENA DO CRIME: trata-se de um apartamento situado no último andar do referido prédio. Constituido por um hall de entrada, uma cozinha, dois quartos, uma sala e varanda que circula toda a área da casa (ver planta em anexo). A vítima foi encontrada pela mulher-a-dias no quarto principal. À chegada o investigador deparou-se com o corpo da vítima deitada, nua, na cama. Não se detectaram sinais de luta. A ordem na arrumação da casa estava aparentemente mantida. Todos os indícios apontam para que o crime tenha sido iniciado e concluído no quarto da vítima.
Há claros sinais de crime passional violento. O corpo encontra-se lateralizado sobre o seu lado direito. O cadáver está muito pálido, houve perda de sangue exuberante mas os lençóis estão praticamente limpos. Existe uma grande mancha na parede que se situa á cabeceira da cama. Presume-se que será sangue com uma substância esbranquiçada que se apresenta em pequenos montículos agarrados á cabeceira de madeira trabalhada da cama. Presume-se que se trata de substância encefálica. O crânio da vítima apresenta-se largamente deformado. Cerca de um terço da calota craneana (á direita) foi, aparentemente, pulverizado e projectado para a cabeceira da cama. Não foi possível encontrar o olho nem a orelha direita da vítima. Presume-se que a causa de morte terá sido traumatismo violento com objecto rombo. As bordas da ferida mostram pequenos sulcos no osso exposto que fazem presumir um objecto serrilhado. A averiguar pela medicina forense. Nos flancos da vítima surgem pequenos sulcos paralelos espaçados em cerca de 3 cm entre eles (em grupos de 5) com uma profundidade de cerca de 1 cm. Feitos post-mortem. A vítima apresenta ainda fracturas dos ossos dos braços e pernas, que se encontram colocados em ângulos anatomicamente impossíveis.
As janelas da varanda encontram-se fechadas por dentro à chegada do investigador. Não há sinais de violação. Aguarda-se por mais dados forenses.
Conclusão: crime de homicídio voluntário e premeditado com uso de violência extrema e mutilação do corpo post-mortem, presume-se que de causa passional. Ainda não foram identificados suspeitos.

domingo, 25 de outubro de 2009

O Inverno e a Aldeia 11

Floresta S. Vicente da Lua, Janeiro 1953

A quem interessar
Continuo vivo e na floresta. Tal como eu uma mão cheia de habitantes da aldeia conseguiu fugir, tenho a certeza disso, apesar de nenhum deles se querer mostrar, pois vivemos como ratos enfiados em buracos escuros e sujos.
Aprendi a lutar com tudo o que apanho, desde paus, a pedras, às minhas próprias unhas que deixei crescer para lhes cravar os olhos, assim ficam sem ver até se recomporem. Os gajos saram qualquer tipo de ferida. Quando a gente pensa que os esventrou cicatrizam com uma limpeza que assusta.
tenho tentado fabricar armas com o que a natureza me dá, mas aqueles cornos não morrem assim. O máximo que tenho conseguido é atordoá-los, ganhar tempo para a fuga. Mas até na fuga eles me fodem, se corro lento demais eles saem da espécie de desmaio e apanham-me, se corro muito depressa posso cair e por aqui já aprendi que quando caímos morremos. tenho fugido como um animal selvagem, fintando, trocando-lhes as voltas em ziguezagues.
Sei que tenho que ser forte por ela, pois apesar de me ter abandonado, acabará por voltar, se é que já não voltou e se esconde tal como eu num destes buracos sujos. Tenho dias em que só quero morrer pelas minhas mãos, outros dias em que acordo com ganas de dar cabo deles todos, se ao menos soubesse como...
Já percebi que eles farejam medo, que nos lêem dentro da cabeça, sabem para onde vamos e nos moem tanto o corpo como a alma, esta parte disse-me o vigário. Os gajos não gostam do vigário, não lhe tocam, têm-lhe asco. Ele não quis fugir, ficou na capela. Pensa que a malta que lá ficou tem que ser salva, só não percebeu é que todos os que ficaram estão fodidos. Foram mordidos e em breve se vão transformar também.
Se ao menos eu conseguisse chegar ao padre. Se eles lhe têm nojo o homem é de serventia para os que como eu fugiram. Já tentei reunir mais homens para voltarmos à aldeia, mas nenhum tem tomates, nenhum dá as caras. Eles sabem que só quando estamos escondidos nos buracos é que não nos sentem. Por isso sair só para arranjar o que comer e mesmo assim o risco é muito.
Sempre que saio para caçar tento estudá-los melhor. Hoje sei que vou descobrir um bocadinho mais. Só não posso sentir medo, medo não, nunca. O medo é que o eles cheiram primeiro.
Já escureceu e de noite é menos perigoso, eles não enxergam bem, só cheiram, cheiram o medo. Mas eu não posso ter medo, não agora que precisam de mim...


Caixa número 30 /Documentos por identificar. Prioridade: Máxima.

Nota: A aguardar análise de laboratório forense.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O Inverno e a Aldeia 10

Lisboa, 7 de Setembro de 1974
Correspondência Pessoal/Devolvido ao Remetente

Joana não faz sentido impedires-me de ir aí.
Se o risco que corro é perder-te para sempre se te procurar, diz-me então o que é que muda se ficar?
O que é que se passa de tão grave? As cartas que remeto aos meus pais são devolvidas com uma enorme cruz sobre os seus nomes, os telegramas que tento enviar não chegam. De Sta. Apolónia dizem-me que o velho apeadeiro de S.Vicente da Lua encerrou, que não há bilhetes de comboio para aí chegar. Que terei que percorrer os 70 quilómetros que separam as Penhas da Saudade de S. Vicente pelo meu próprio pé, entre bosques e florestas. Ainda assim estou disposto a ir, enfrentarei lobos, tempestades, geadas para encurtar a distância entre nós. Mas rogo-te que me respondas, que me dês uma luz de esperança, um sinal por mais ínfimo que seja e eu irei. Viveremos aqui mesmo na Capital, longe do que te atormenta aí. O meu quarto chega para nós.
Vivo ensurdecido com o silêncio que me chega daí. Se a tua resposta não vier dentro deste mês partirei e não há nada, nem ninguém que me impeçam de te resgatar do que quer que seja.
Envio-te estas letras pelo filho dos Alvares que parte hoje mesmo para S.Vicente de boleia com um colega nosso de faculdade.
Do sempre teu
Júlio

Correspondência Pessoal/ Recebida juntamente com o documento anterior

S.Vicente da Lua (data omissa)

Júlio devolvo-te a tua carta, tenho medo que a apanhem. Eles parecem desprovidos de cérebro, mas...(ilegível)... O filho dos Alvares disse que ia tentar chegar às Penhas da Saudade e pedi-lhe que enviasse....(ilegível)... Eles querem matar-nos a todos.... Os teus pais, eles não sobrev...(manchado de substância de cor vermelha)...Ajuda-me a fugir, vem por favor esquece tudo o que te disse e vem... Espero um filho teu, tira-nos daqui... Vou tentar... (ilegível).... Na floresta...

Nota: Prova redigida com o que parece ser sangue de animal, não foi usada tinta.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O Inverno e a Aldeia 9

(Clicar no play e começar a leitura, please...)



Aldeia de S. Vicente da Lua, 24 de Dezembro de 1952
A quem aprouver.
Hoje tentei abalar daqui outra vez. Os filhos da puta ficam-se no cerco a este buraco onde estou enfiado. Cabrões. Já não boto apeguilhos ao bucho há dois dias. Não tenho dúvidas que estes caralhos, estes meio-sangue de merda vão tentar sair daqui para tomar outra terra qualquer.
Consegui ir até à aldeia. O fedor... pedaços de homem e mulher enontram-se espalhados pelos cantos, meio comidos meio por comer. Os gajos cagam onde comem. Entrei na casa do Ernesto Mouco, ele é costumeiro de ter o fumeiro atado na cozinha. Lá estavam os chouriços! Eles não comem a nossa comida. Nós somos o mata-bicho deles! Quando ia a abalar estava lá um. Estranhei estar sozinho, costumam andar em bando como os ciganos. Covardes! Era um meio-sangue dos pequenos, um meia-leca de merda que me mostrou os dentes serrados, sujos de terra. Ainda andava curvado como um macaco. Atirou-se à minha perna e levou um pontapé bem em cheio no focinho! Já não me apoquentam os pequenos. São ainda crias a aprender a lutar. A merda toda é que uma cria nunca anda longe da mãe...
Ouvi o grito na rua de trás. Parecia alguém a riscar um quadro de ardósia. MERDA! MERDA! MERDA! Pisei o meia-leca, não tive tempo de o matar e corri pela vida! Só se pode correr, em pelejando com os grandes. Apareceu num pincho na esquina da rua e consegui ver. Estão sempre a escorrer cuspo os filhos da puta esfaimados. Este corria como um louco e conseguia sentir o seu bafo merdoso na minha espinha. Saquei do meu bordão de atiçar o gado e, sem parar de correr, balancei-o para trás e espetei-lho com ele nas trombas! Nem soube o que o atingiu!! Ficou no chão, a espernear que nem um bezerro acabado de nascer. Mas fui apanhado à traição por outro, que se atirou para cima de mim. FODA-SE, não sei de onde ele saltou mas a minha sorte foi que rebolámos pelo chão e ele largou-me. Ainda sinto a sua sua carne rançosa na minha mão, como se fosse carne podre a criar aquele bafio, aquela ranha viscosa que surge antes dos murcões começarem a crescer. Agarrei numa pá que me apareceu e bati-lhe com toda a minha força! Não devo ter acertado em cheio porque se levantou e voltou a perseguir-me.
Não há mais nada a fazer. Corri e fugi deles todos com a pá a bater neles e nas paredes, nos grandes e nos pequenos, nem sei quantos eram mas eram muitos. Não sei como se matam os grandes e não consigo matar os pequenos porque nunca andam sozinhos. Enfiei-me no meu buraco outra vez. Consegui trazer dois chouriços que não sei até quando me aguentam... O meu coração bate na minha garganta. Não sei até quando vou viver, mas sei que estes cabrões não me comem sem eu dar luta. Filhos de um corno manso hão-de morrer de caganeira se me comerem.
No meio dos que me atacaram consegui ainda ver as feições da Maria das Dores, do Zé Pastor e do Ernesto Mouco.

O Inverno e a Aldeia 8

Alberto
Outono de 1950
A Chegada


Na sua mão esquerda uma pequena mala com poucos pertences. Alguns livros dos quais nunca se separava, duas, ou três camisolas quentes para vestir debaixo da batina, pois ouvira dizer que naquela aldeia o vento chegava a doer nos meses de Inverno.
Na mão direita a Bíblia puída pela leitura diária e apaixonada.
Olhou S.Vicente da Lua do topo da colina onde se encontrava e respirou fundo, inspirou cada detalhe da paisagem que se prostrava perante o olhar comovido daquele homem de Deus.
A sua primeira Paróquia, os primeiros fiéis, almas humildes ainda puras pela falta do cinzento das grandes cidades. Esta seria a sua missão e tomá-la-ia com os dois braços e o coração inteiro, disso estava certo. Alberto nunca tivera um chamamento épico, uma força visceral a puxá-lo para o seio da Igreja. Fora um caminho sereno o que percorrera até decidir entrar para a vida austera de serviço ao Altíssimo. Não quisera fugir a nada, nem de ninguém. Quisera sim correr na direcção da fé e fizera-o sem medo.
E agora ali estava ele, prestes a entrar na vida activa de um padre, comovido até aos ossos, portador da credulidade dos que acabaram de se iniciar.
Acedera ao pedido do Bispo de Coimbra sem perguntas. O anterior Vigário de S.Vicente da Lua suicidara-se e o escândalo em torno daquela morte pecadora levou a que a Paróquia estivesse sem regente durante largos anos. O seu querido amigo e Bispo confiara nele, um jovem padre, a nobre missão de retomar as actividades da Santa Madre Igreja na aldeia.
Um ruído desviou Alberto do rumo dos seus pensamentos. As folhas de Outono sob os seus pés levantaram-se como que movidas por uma brisa invisível e formaram uma espécie de caminho esvoaçante sobre o seu olhar atónito. Podia jurar que sentia uma mão quente a pressionar-lhe as costas na direcção que as folhas indicavam e uma voz suave no seu ouvido que lhe dizia: Vai!
Apertou a bíblia com toda a força na palma da mão e rezou enquanto caminhava na direcção de um ruído. À medida que as folhas iam caindo sem vida sobre o chão húmido de Outubro, o som foi ficando mais claro, até ser impossível não perceber que um homem e uma mulher se amavam escondidos entre as árvores da floresta.
Quis virar costas e retomar o caminho da aldeia, mas a mão invisível aprisionava-o ao chão e a voz segredava-lhe: “Vê! Vê com os teus próprios olhos o que perdeste Alberto”.
As árvores que cobriam os jovens amantes afastaram-se como que por encantamento, deixando-os desnudos ao azulado e terno olhar do vigário.
Ele cobria de beijos o corpo quase transparente dela, com uma dedicação que só empreende quem ama. Ela gemia baixinho sob os seus lábios, como que transportada ao mais belo dos lugares. Enquanto entrava suavemente dentro daquela bela mulher ele entoava palavras de amor, como se lhe cantasse ao ouvido, para serenar o que não precisava de conforto, para adocicar o que já de si parecia tão doce. Alberto estremeceu, não de luxúria, mas de encantamento por tamanho amor.
- Amo-te Joana, vou ser sempre teu, para sempre teu.
- Também te amo Júlio, fica comigo…
O Vigário forçou-se a contrariar a mão que o mantinha preso naquela contemplação, usando para isso todo o fervor da sua fé:
- Deixa um homem de Deus continuar o seu caminho, nada tenho a fazer aqui – Sussurrou.
- “Vê o que perdeste padre! Olha-os uma última vez”
A voz era assexuada, indefinida, perigosamente tentadora, mas Alberto levantou o crucifixo que lhe pendia do pescoço bem alto e rezou com quantas forças tinha, estugando o passo colina abaixo. Um único pensamento lhe movia os sentidos: Sair da floresta, chegar o mais depressa que conseguisse ao abrigo da casa de Deus e reflectir sobre o que acabara de acontecer...

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

O Inverno e a Aldeia 7

(Documento prioritário.)
Diário da Viagem, dia 56.
Parti dos montes onde me tinha acomodado nos últimos dias hoje, pela fresca. O dia estava esplendoroso e quente. Estranho para o mês de Novembro! Caminhei algumas horas descendo pelas rochas menos íngremes das montanhas e cheguei à planície ao início da tarde.
Hoje fui, mais uma vez confrontado com o poder da Natureza, afinal a principal razão desta viagem só comigo e com a minha mochila. Uma viagem de auto-conhecimento através da Mãe Natureza, uma caminhada espiritual de confronto comigo mesmo e com os meus limites. Uma espécie de eremita itinerante. Mas, dizia, a Natureza tem os seus mistérios e o dia, que amanhecera radioso, escureceu abruptamente. O Sol pareceu ter-se escondido atrás dos imponentes calhaus que dominam estas terras. No final da tarde avistei um pequeno aglomerado de casas. Inicialmente foi-me difícil percebê-las tal era o peso do nevoeiro sobre elas. As casa pareciam espectros flutuantes que apareciam e desapareciam a seu bel-prazer. Não vi habitantes. Ao chegar apercebi-me que se trata de uma aldeia deserta! Que privilégio o meu de poder caminhar onde já só os fantasmas do passado vagueiam.
Entrei em algumas casas, muitas ainda com vestígios de vida: as mesas, as cadeiras, algumas fotos de família. Certamente ninguém voltou a este local inóspito para reclamar os pertences dos seus queridos. Acho que pertencem ao monte agora. Deixei-os ficar. Escrevo à luz das velas da velha capela, guardado pelos santos que me olham dos seus altares.
(fim de página, ler página seguinte.)
Diário da Viagem, dia 57.
Este (nódoa) está amaldiçoado. A luz do dia permitiu-me ver melhor. Há crucifixos (nódoa), de cabeça para (nódoa). Alguns espalhados pelas ruas. Os cães selvagens que me têm seguido desde (nódoa) desapareceram. O nevoeiro é (nódoa) pesado. Pesa sobre os ombros, dobra-nos, retira-nos a alegria. Em algumas casas as paredes estão manchadas com (nódoa), como se alguém tivesse atirado latas de tinta contra elas. Mas não é de tinta que se trata... tremo (nódoa)... sangue!
Durante todo o dia senti-me seguido mas, cada vez que olhava (nódoa) o nevoeiro. Maldito nevoeiro... não fui capaz de encontrar um (nódoa) saída deste lugar. Cada rumo que tomava trazia-me de volta a (nódoa), a igreja. Ouço uivos mas não há cães e os lobos não se aproximam. Há algo de malévolo (nódoa). Partirei log
(Documento encontrado junto a cadáver ainda não identificado. Resto da página coberta de sangue. Não existem mais entradas.)

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

o Inverno e a Aldeia 6

Actualidade Sede da Polícia Judicária - Lisboa
Alguns recortes de jornal, cartas rasgadas unidas como um puzzle caseiro, desenhos infantis com um tom demasiado macabro, relatórios de análises de ADN, relatórios periciais, fotografias de famílias inteiras que pareciam devolver o olhar a quem as fitava e dezenas de pequenos objectos não identificáveis por um observador desatento repousavam num enorme quadro de cortiça presas meticulosamente, obedecendo a uma ordem que só o Inspector entendia.
Apagou o último cigarro do maço e passou as mãos pelos cabelos salpicados de cinzento. Levantou-se sentindo as pernas pegajosas pelo calor que se fazia sentir no gabinete e deu um pontapé na inútil ventoinha que se limitava a espalhar ondas de calor em seu redor.
- Nem que seja a última merda que faça na minha vida, eu vou conseguir descobrir-te, viva ou morta! Porra para isto tudo! Nada bate certo!
Desta vez o pontapé saiu na direcção da sua própria cadeira que se limitou a girar em torno de si própria enquanto gemia baixinho, gozando com ele. Tudo parecia zombar de si, até o próprio gabinete, claustrofóbico de luzes fluorescentes que acendiam e apagavam consoante o seu estado de espírito.
Desapertou o colarinho suado e apoiou-se no imenso placar fitando cada uma das pessoas retratadas nas imagens, buscando nos seus olhares vazios a resposta.
Retirou do bolso a carta que não chegara a etiquetar como prova e segurou-a na palma da mão quente e poderosa. Podia sentir as pontas dos dedos de quem a escrevera a percorrerem o contorno dos seus finos lábios.
O seu estado de transe foi interrompido por um estrondo seguido da mais completa escuridão. Mas ele nem pestanejou, estava mais do que acostumado às nuances das luzes naquele gabinete. Limitou-se a recitar interiormente o conteúdo da carta que sabia de cor.

Documento não anexado ao rol de provas. Categoria: Correspondência Pessoal.

Aldeia de S Vicente da Lua, 10 de Agosto de 1974

Júlio rogo-te que não regresses.
Se tens ainda no teu coração algum amor por mim fica na cidade, não me procures mais.
Eu não sou a mesma Joana que deixaste. Dentro de mim cresce alguma coisa que não consigo mais controlar, agora tenho a certeza disso. Só pode ser Ele que veio para nos buscar a todos, a cada um de nós. O Vigário tem colocado cruzes sobre as nossas casas quase todas as noites, mas de nada nos valem. Estamos irremediavelmente tomados.
Temo o nosso reencontro, pois o amor que julgas nutrir por mim esfumar-se-á assim que pisares a Aldeia, assim que vires no que me transformei.
Não desejo voltar a tocar-te, a olhar-te, a falar-te, pois assim como o nosso caso começou, como um fogo terminou com a mesma rapidez.
Se tornares à terra não te perdoarei e tudo o que tivemos deixará de ser uma boa recordação.

Joana


Um grito gutural fez com que os vidros das janelas estremecessem à beira do colapso e as luzes reacenderam-se como que por magia. Só passados uns segundos é que percebeu que aquele rosnar cavernoso saira de dentro da sua própria boca. Ele jamais voltaria a ter paz...

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O Inverno e a Aldeia 5

(Documento nº 578, caixa nº 76, tipologia: recorte de jornal / documento público)

ÚLTIMA HORA: ACTRIZ QUERIDA DO POVO LISBOETA ASSASSINADA!!

Maria da Conceição Felismino, conhecida do grande público como Sãozinha, apareceu ontem morta no seu apartamento na marginal de Cascais. A polícia mobilizou todos os seus efectivos para tentar encontrar pistas que permitam encontrar e levar à justiça o autor de tão hediondo crime.
Apesar dos esforço para obter dados que permitam esclarecer o público acerca das circunstâncias da morte de Sãozinha, a polícia bloqueou todos os acessos aos luxuosos apartamentos onde vivia a actriz. Fonte próxima da investigação, contudo, declarou ao nosso jornal que se tratou de uma morte violentíssima, com traumatismos corporais que deixaram o corpo quase irreconhecível. Contactado pelo nosso jornal, o agente de Sãozinha declarou "ela não tinha inimigos! Era uma pessoa querida por todos, no meio do teatro e saía à rua sem qualquer tipo de dissimulação. Toda a gente gostava dela!", visivelmente emocionado. Os vizinhos de Sãozinha, membros da alta sociedade de Cascais como a proeminente família Bourbon e Cyrne, não prestaram declarações oficiais mas fizeram saber da sua consternação pela morte, ocorrida num dos condomínios mais seguros do país.
Ao fim da manhã, muitos populares juntaram-se junto ao cordão de segurança montado pelas forças policiais. A tristeza era a nota dominante e logo surgiram as primeiras flores, velas e fotos da malograda actriz. "Era como se fosse minha filha... adorava vê-la no teatro e nas novelas. E era natural de uma terra bem próxima da minha..." declarou, entre lágrimas, uma fã da actriz.
Maria da Conceição Felismino era natural da Aldeia de São Vicente da Lua, tendo nascido em 29 de Março de 1941. Mudou-se para Lisboa na década de cinquenta perseguindo o sonho de ser actriz. Foi com o filme "Adeus Adeus minha Terra" que se tornou conhecida do grande público. Morre em circunstâncias trágicas e ainda por esclarecer após uma carreira de 10 anos de sucesso. Na edição de amanhã será publicado um artigo biográfico em homenagem a Sãozita.
A redacção presta publicamente, as condolências à família e amigos da actriz.
Artigo publicado na edição de "A Voz Lisboeta" de 10 de Outubro de 1973. Ver documento relacionado nº 579, na mesma caixa.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

O Inverno e a Aldeia - 4

Documento nº3, caixa 12, tipologia: cópia de registo simples/ a destruir

Albergaria Nossa Senhora dos Pinhais
Travessa do..., nº 4, Lugar de Magusteiro

Nome completo: Joaquim ????
Proveniência: Aldeia de São Vicente da Lua
Entrada: 11/Outubro/195...
Saída: ND
Pagamento: ND
Observações: o rapaz estava vizivelmente perturbado e bastante (letra ilegível) muito nervozo só sei que era de São Vicente porque deixou cair uma fotografia de uma rapariga com a igreja de lá por tráz e dizia para Joaquim, com amor, Conceição.
(linha em branco)
Tentei cumprir as ordens do patrão e pôr o hóspede na rua, mas ele começou a (letra ilegível) e atacou-me (letra ilegível). Sem sinais de embriaguez mas com (ilegível) nas unhas.
(duas linhas em branco)
Nota à parte, colada no registo:
Patrão, se quizer que eu continue ao vosso servisso não fasso mais o turno da noite. Tenho filhos a criar e (completamente ilegível)
(uma linha em branco)
Nota à parte, colada no registo: Patrão, vou-me embora com os meus filhos para longe daqui. Não se preocupe com as contas. Fique com Deus.

Conclusão: registo e notas escritos por Manuel Silverino, viúvo, funcionário da Albergaria Nossa Senhora dos Pinhais de 1940 até à data do presente registo, n.1919, pai de Guilhermina Silverino n. 1939 e Manuel Silverino Filho, n. 1942.
Paradeiro de Manuel Silverino: desconhecido.
Paradeiro de Guilhermina Silverino: desconhecido
Paradeiro de Manuel Silverino Filho: desconhecido.

o Inverno e a Aldeia 3

Documento nº 25/ Caixa 3 / Tipologia: Correspondência Pessoal Vigário Alberto/ Em análise

Aldeia de S. Vicente da Lua, 2 de Julho de 1952

Mais do que Bispo, meu Caro amigo Pedro:

É com as mãos trémulas pela crescente falta de fé e vergadas pela dor que lhe redijo o que penso ser a minha última missiva. A gélida temperatura que se instalou na aldeia nestes meses de verão impede-me de continuar a escrever-lhe, pois com o gelo veio também a artrite não apenas nos meus frágeis ossos, mas acima de tudo na minha empobrecida alma.
Enquanto os gemidos da noite e do vento (assim quero acreditar) gritam lá fora este seu amigo não dorme, caminha de batina pela capela, cai de joelhos defronte do altar, apela sem agravo a todos os santos redentores. Porquê meu Deus, porque é que não consigo chamar o rebanho à igreja nem como refúgio do frio que se faz sentir? Porque é que a palavra do Senhor deixou de fazer sentido aos habitantes da aldeia? Eles que me enchiam a capela todos os dias do mais puro dos fervores?
Porque é que sinto que já não sou bem-vindo nas suas casas, nas suas vidas? E acima de tudo porquê este vacilar interior que me atormenta, este fogo numa alma que se quer humilde?
À noite tudo surge para me roubar a pouca sanidade que resta. Escuto gemidos, preces longínquas em sânscrito, vejo sombras. Sei que tudo não passa de uma interminável provação de fé, mas porquê a mim?
Continuo a colocar noite após noite os crucifixos sobre as portas das habitações, tal como me aconselhou, mas basta um par de dias para que retornem à proveniência. Contei-lhe já como as cruzes de Cristo reaparecem na capela pregadas ao contrário sobre o altar…
Quero ser mais forte que tudo isto, Deus sabe que tenho tentado ver as coisas sob o seu olhar, mas sinto-me no final de um longo caminho infrutífero e sinto que Ele está na sombra à espera para me levar a qualquer momento...
Aguardo impacientemente ordens suas meu amigo, pois se nenhuma orientação me der, estou em crer que me perderei irremediavelmente.

O seu servo e amigo
Alberto

Sobre a folha de papel encontrados vestígios de uma substância de cor avermelhada que se repete sobre a entrada número 2 desta sequência. Aguarda análise do laboratório.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O Inverno e a Aldeia 2

(Documento nº 66, caixa 5, Status: em análise)
Querido Diário:
Sinto-me triste. Uma tristeza profunda que não vem de dentro. Não é como as outras tristezas que já senti antes. É uma tristeza que vem de fora. É como se a tristeza fosse transportada por este estranho nevoeiro que envolveu toda a aldeia.
Hoje na escola proíbi os meninos de sair para o recreio. Ficámos todos dentro da sala, mas ninguém falou ou brincou. O silêncio pareceu-nos tão pesado que ninguém sequer se levantou do seu lugar. No corredor ouvia-se a discussão exaltada entre o Padre, o guarda Abel e a menina Cidinha. Os seus gritos chegavam-nos aumentados e distorcidos pelas paredes de pedra fria. A menina Cidinha saiu para a rua a chorar. Vimo-la através das janelas. Correu para fora dos portões da escola e desapareceu, envolvida pela névoa. O padre Alberto saiu logo depois dela mas travou a fundo junto aos portões. Parecia que tinha batido contra uma parede. Regressou lentamente para dentro. Nunca virou as costas aos portões.
Continuo a ser olhada com desconfiança desde que cheguei. Parece que me culpam pelo abandono da antiga professora. Os pais não me falam, o padre não me consulta, as velhas beatas segredam à minha passagem. Apenas uma pessoa sorri para mim. Um homem com aspecto doce mas com a pele escura pelo sol que apanha nas eiras. Parece que todos discutem na aldeia. No caminho para casa notei a melancolia que paira sobre este lugar. As luzes estão apagadas em quase todas as casas. As portas fechadas e os crucifixos pregados da parte de fora. Nunca tinha visto tantas cruzes em tantas portas. Algumas delas estavam meio abertas mas não sei se alguém tinha entrado ou tinha saído. Ouvi alguns homens a berrar com as suas mulheres, com os seus filhos. Não querem que saiam de casa. Alguns deles não vão há escola há dias. Dizem que foi comigo que chegou o nevoeiro.
Os cães pararam de ladrar. Os cães ladram sempre durante a noite. Ao desafio. Se um começa logo outro o acompanha e depois outro e outro. Fico sempre contente por os ouvir ladrar. Consigo imaginar o som dos cães a viajar pelas ruas da aldeia. Mas também isso acabou.
Das traseiras da escola vi três sombras que se deslocavam no bosque. As árvores escondiam-nos porque parecia que eles apareciam num lugar para depois desaparecer e voltar a surgir num local diferente. Acho que foram eles que fizeram calar todos os cães.
Releio o que escrevi. Acho que esta solidão a que estou votada, a forma fria como as gentes me tratam desde que cheguei estão a fazer-me ver coisas...

domingo, 11 de outubro de 2009

O Inverno e a Aldeia 1

(documento nº 41, caixa 17 - tipo: correspondência pessoal. Status: a destruir)

Aldeia de São Vicente da Lua, 14 de Outubro de 195...


Querida Maria da Conceição, que Deus te guarde sempre, minha sobrinha.
Sei que é assim que se costuma acabar as cartas, mas prefiro escrever o mais importante já, para o caso de algo me impedir de terminar esta missiva. É que algo tão simples e pequeno, como o tempo que levo a mandar-te as notícias desta aldeia que deixaste, deixou de ser certo. Por isso, desta vez não te escrevo a contar das coscuvilhices da vizinhança e da algazarra dos mais pequenos, ou do padre estranho que nos mandaram este ano, ou da escola que ainda não conseguiu encontrar uma professora à tua altura.

Não há tempo, minha doce Conceição, sei-o com a certeza de todos os meus cabelos brancos.

Falo-te sim, do Inverno que trouxe geadas demasiado cedo este ano – como se também ele temesse pelo tempo que lhe resta - ou sobre as petúnias da minha querida irmã e tua mãe, que deixei morrer ainda não sei bem como, quebrando uma de duas promessas: a de cuidar de ti e delas, suas filhas amadas. Digo-te ainda que suspenderam o terço das segundas à noite e os bordados das quintas no salão paroquial. Estes dias, ficamos todos em casa ao cair da noite, desfiando e bordando os nossos próprios pensamentos.

Alguma coisa está a passar-se nesta tua terra, Conceição. Viúvas de luto aliviado voltaram a cobrir-se de negro, as crianças não saem em debandada no fim das aulas. Deixaram de brincar no pátio da igreja também. Se eu pensar bem, há muito tempo que não oiço o Zezinho da Eulália, ou o Inácio, ou o pequeno Pedro do padeiro.

As crianças têm estado em silêncio.

Mas não quero encher-te de ralações, pois foste para Lisboa em busca do teu sonho, ser actriz, e não para te preocupares com esta gente que te virou as costas. Toda a aldeia falou de ti, mas fizeste ouvidos moucos, e ainda bem. Quem nasce com a tua capacidade para entender a alma humana está destinado a voos mais altos, e por isso ajudei-te a ir. Tu realizaste o meu sonho, que era aprender a ler e a escrever, em troca da tua liberdade. Nada mais justo. Deste-me a chave das palavras, eu dei-te as chaves da tua vida.

Nunca te tinha dito isto, pois não? Acho que não. Esta carta já parece uma despedida de uma velha moribunda. Deves pensar que tolinha é a tua tia... mas, se pensares bem, o que sabemos nós da hora da nossa partida? Nada. Ou quase nada.
Só podemos senti-la.
Como um Inverno que chega demasiado cedo.

Despeço-me assim, minha querida Conceição, na esperança de te mandar notícias mais animadoras da próxima vez.

Com todo o amor desta tia que te quer como mãe,

Maria Dulce

PS – tentei dar a fotografia ao Joaquim, mas não o encontrei ainda. Há dias que ninguém o vê.

Rabiscado em rodapé: fotografia ??? MD - desaparecida em 1/11/195..., Joaquim ??? sobrenome???

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Então???

Mas afinal não se começa aqui outra história??? Um gajo retira-se durante uns dias e já nada se faz neste blog...

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O Prazer à distância de um botão.

Daniel entrou no quarto da mãe e encontrou-a pendurada no tecto, lívida. Ainda mais alva do que o normal. Aquele branco marmóreo contrastava com o negro das suas vestes. "Mãe?" sussurrou Daniel que sabia que Alva detestava que falassem alto na sua presença. Olhou-a e sentiu os seus olhos vazios. Estranhou o baloiçar do corpo da mãe. O grito da empregada que descobriu aquele cenário assustou-o. Encostou-se a um canto e assistiu ao desespero de Thomas a suportar o peso do corpo, ao choro compulsivo das empregadas, á chegada dos homens de negro que a retiraram do laço mortal, ao padre que entoava orações sombrias e ao silêncio do quarto quando todos se retiraram. Ninguém pareceu dar pela sua pequena presença. No chão da sala, o véu mortal repousava. A medo, Daniel aproximou-se e pegou no véu negro. Aproximou-o da face e foi invadido pelo cheiro a incenso intenso que dele emanava.
O mesmo cheiro que invadiu o corpo de Gina na noite em que foi visitada pelo Anjo Negro. No dia seguinte a essa noite, acordou dorida e com estranhas marcas negras nas costas. Descobriu que tinha imensa dificuldade em respirar e em mover-se mas não se lembrava de nada. A noite era um enorme buraco na sua memória. Sentiu o desprezo e a rispidez das freiras e dos padres e estranhou a ausência de um dos padres do convento. Entretanto foi adoptada e abandonou o convento mas sempre com aquele buraco negro na sua memória. Anos mais tarde, quando trabalhava numa empresa como secretária de um dos directores, entrou numa sala e sentiu aquele cheiro novamente. Sentiu-se invadida por ele, dominada por ele. Acordou no dia seguinte, nua, no meio de escombros de um incêndio e, logo depois, perdeu tudo. E ganhou um novo hiato na sua mente.
Daniel cresceu atormentado pela mãe. Na adolescência via-a esporadicamente. Atrás de uma árvore, no cimo das escadas, sentada na sua cama. E ele guardava sempre o véu perto de si. Quando Gina chegou, Daniel estava lá. Assistiu ao seu encontro com Carvalho, o zelador. E, pela primeira vez, Alva falou com ele. "Esta mulher é o Diabo!" disse-lhe. E Daniel seguia-a, para todo lado. Estava lá quando Gina seduziu Thomas, estava lá quando Gina se masturbava freneticamente. E não resistiu aos feitiços que Gina lhe lançou quando se entregou a ela. Depois disso, Alva falava com ele constantemente "Tens de os matar!" gritava-lhe sem cessar. Depois de ser enviado para o Seminário, um bondoso padre percebeu a tormenta daquele jovem. Cuidou dele e percebeu a razão da loucura de Daniel: o confronto com a morte violenta da sua mãe. E quando viu o véu de Alva encontrou a razão! Através de um processo doloroso de hipnose regressiva, Daniel pode finalmente confrontar-se com a sua perda e fazer o luto.
Quando Daniel entrou no quarto de Gina e Thomas, Gina sentiu aquele odor a preenchê-la de novo. Sentiu claramente a sua sanidade a abandoná-la e abandonou-se ao sabor da lascívia. Apoderou-se dela uma vontade selvagem e atacou Thomas com fulgor. A sua língua tentava penetrar fundo na boca de Thomas. Guiou-o até aos seus seios firmes gemendo "Lambe-me..." enquanto disparava um olhar felino em direcção a Daniel. "Daniel, por favor, preciso de um homem que me preencha, que me penetre com a força e o volume que eu preciso... e tu tens isso Daniel, suplico-te... INVADE-ME!!" Daniel deixou cair o véu e retirou-se. "Não tomarei parte nesta loucura..." enquanto Gina se colocou em cima da Thomas. Abriu as pernas e sentou-se na face dele, como se desejasse que ele se introduzisse, todo ele, no seu húmido túnel. Thomas fazia tudo para aplacar aquele fogo que a consumia. A sua língua penetrava-a o mais fundo que era capaz mas nada chegava! Gina repetia continuamente "Preciso de um cajado forte e duro... preciso de um homem a sério..." e Thomas desistiu. Sentia-se humilhado, diminuído, derrotado. Afastou-a e sentou-se na cama. "Gina... precisamos de resolver... Gina?", mas ela estava absorta pelo véu, obcecadamente a olhá-lo como se a sua vida dependesse disso! "Gina? GINA!!" mas ela continuava hipnotizada por um qualquer poder que o véu destilava. Num salto, agarrou o pedaço de tecido e queimou-o. O cheiro a incenso foi rapidamente consumido pelas chamas e substituído pelo das fibras queimadas. Gina despertou e estava confusa. "Meu amor, o que se passou?", e Thomas percebeu.
Alguns meses de terapia bastaram para Gina recuperar os buracos negros da sua memória. Compreendeu e aceitou o que lhe tinha acontecido e foi finalmente feliz! Fazia amor com Thomas muito regularmente, descobriram juntos novos acessórios de prazer que a satisfaziam. Falavam muito e amavam-se sem reservas. Mas Thomas sentia-se levemente infeliz. muito embora o tentasse disfarçar e Gina percebia isso. Até que um dia, Gina entrou no quarto com a felicidade estampada no rosto! "Thomas, meu amor!!! Olha, olha o que eu descobri!! Vê...." e passou uma revista para as mãos de Thomas. Ele olhou a pagina e pegou na revista. Por um longo momento não manifestou qualquer emoção mas depois chorou. E chorando abraçou longamente Gina dizendo "Obrigado meu amor, muito obrigado!!". Gina devolveu o abraço e a revista caiu no soalho lustroso do quarto. Na página via-se a foto de um pénis de onde saiam fios electrónicos ligados a uma consola com alguns botões e na legenda "Descubra a primeira prótese peniana do mercado!! A suavidade e verosimilhança do silicone moldado à sua medida aliada à tecnologia de ponta. Com uma pequena intervenção cirúrgica, o prazer está à distância de um botão".
E viveram felizes para sempre.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Finalmente o Véu

Gina beijou o rosto de Thomas, sorvendo cada lágrima que lhe molhava a pele, como se quisesse livrá-lo de toda a dor que sentia. As mãos dele percorreram a parte de dentro da curta camisa de noite e acariciaram-lhe a pele demasiado macia naquela zona sensível. Gina estremeceu e envolveu-o nos seus braços num abraço que lhe cortou o fôlego.
Thomas desprendeu-se e olhou-a repleto de uma frustração muda.
- Como é que vamos conseguir viver assim?
Gina pegou suavemente na mão dele e conduziu-a até à zona mais quente do seu corpo arrepiado.
- Há formas de continuarmos felizes Thomas. Eu quero acreditar que vamos conseguir sim. Por favor vamos pelo menos tentar.
A porta do quarto rangeu de forma assustadora e um rosto pueril assomou, olhando-os num misto de doçura e arrependimento. Daniel tinha mudado. Em vez de envelhecer, havia regressado à ingenuidade juvenil que perdera algures entre tanta loucura.
- Daniel? – A voz de Thomas estava enrouquecida, quase chocada.
O olhar de Gina caiu sobre o pedaço de tecido que Daniel segurava entre os dedos. Um tecido delicado, vaporoso que parecia libertar uma luz avermelhada como que por magia.
- Aqui o tem. O véu é seu, faça dele o que bem entender. Durante o internamento fui visitado por um padre que me curou. Isto já não exerce qualquer influência sobre mim.
Thomas tremeu, a simples imagem daquele véu era o suficiente para despertar nele mais náuseas do que podia suportar.
- Está com medo de quê? Força, pegue nele, queime-o, rasgue-o, abrace-o, consuma-o, eu já não quero saber. Vou ingressar no Seminário amanhã mesmo. Nada disto me toca, me afecta.
Gina estremeceu face à palavra Seminário, todas as memórias bíblicas da sua infância regressaram em catadupa, deixando-a a arfar. Apertou com força a mão daquele homem ao seu lado enquanto fitava Daniel.
- Estás mesmo bem Daniel?
Gina teve que desapertar os botões da camisa de noite que a asfixiava, toda ela era fogo. Seria a luz daquele maldito véu que a penetrava em silêncio?
- Já lhe disse que estou curado – Daniel atirou o véu na direcção do pai que o agarrou como se de uma chama se tratasse. O seu rosto ficou automaticamente púrpura assim que o tecido lhe tocou a pele e Thomas chamou o jovem que se afastava já.
- Espera Daniel!
O olhar de Daniel caiu sobre o pai, para logo se desviar para o peito generoso de Gina.
- Tenho uma proposta para te fazer. Um pedido.
O véu despertava cada poro da sua pele, ardia-lhe como ácido e as palavras voaram antes que tivesse tempo de pensar sobre elas.
- Fica connosco.
Gina pousou a mão sobre o véu e completou o pensamento de Thomas. Os dois eram agora um só, pensavam em uníssono, freneticamente.
- Fica Daniel. Serás a parte que nos falta.
Thomas beijou languidamente Gina, enquanto esta olhava Daniel suplicante, abrindo levemente as suas longas pernas e mostrando-lhe o caminho que deveria seguir...

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Alva.

"Alva. Alva era o seu nome. Conhecia-a ela era ainda muito jovem e eu um já um homem feito, com 19 anos. Não sei se os seus pais preconizaram a sua aparência física através do nome mas a sua pele era clara e limpa. Uma perfeição à vista e ao toque. Os seus olhos claros eram de um azul-água cristalino que até hoje não vi em mais mulher nenhuma. E era tímida. Muito tímida. Inicialmente não lhe prestei muita atenção. Estava mais interessado nas caçadas a`cavalo que o seu pai organizava nas suas terras. Estas terras que hoje me pertencem.
Eu era um jovem rebelde e inconsequente, famoso entre as donzelas da alta-sociedade pelas minhas desventuras sexuais! Até que, um dia, alva olhou para mim e os seus olhos prenderam-me. Parecia estar enfeitiçado por aqueles olhos cor de mar e nunca mais olhei outra mulher. Entregámo-nos um ao outro debaixo da sombra protectora do Grande Carvalho, nos limites das propriedades. Cavalgávamos até lá e fazíamos amor sem reservas, sem tabus e depois adormecíamos para acordar já demasiado tarde para que não fossemos descobertos! O seu pai, apesar da minha fama de marialva, gostava da minha energia e começou a incluir-me na gestão dos homens e dos trabalhos na propriedade. Casámos numa cerimónia simples debaixo do mesmo Grande Carvalho que enfeitou de branco, como a cor da sua pele.
Os primeiros tempos de casamento foram vividos em contínua lua de mel. Todos os pretextos eram suficientes para nos tocarmos, para abraçar e para, eventualmente, nos enrolarmos no nosso pequeno ninho de amor. Mas Alva escondia uma parte de si que se revelou ao primeiro contratempo: o ciúme! Quando, numa tarde de Outono entrou na sala onde eu e uma velha amiga que nos visitava, ficou tão furiosa que destruiu as loiças da cerimónia do casamento. Esse foi o ponto de viragem Passámos a discutir quase todos os dias e ela tornou-se obsessiva. Seguia-me para todo o lado e não raras vezes me insultou em público. O meu interesse por ela esmorecia na medida inversa do aumento da sua loucura. Deixei de dormir na mesma cama, o que só aumentou a sua certeza de traição. Num acto tresloucado de ciúme, seduziu um dos nossos empregados e, dormindo com ele, engravidou. Nove meses depois nascia Daniel. O empregado desapareceu nesse mesmo dia.
Alva nunca tratou de Daniel. Passou a vestir-se de negro e a usar um véu a cobrir a face. Se por vergonha, não sei. Tornou-se numa fanática religiosa e púdica, com tiques de moralidade vitoriana. Andava muitas vezes pela casa, murmurando orações de excomunhão ou falando com ela própria. O pai dela morreu, desgostado com o deplorável estado da filha e eu fiquei só com ela e Daniel. O ambiente tornou-se insuportável levando a que todos os empregados se despedissem. Todos menos Constança, que chegou já depois da loucura de Alva mas que parecia entendê-la e até ser capaz de racionalizar com ela.
Numa noite, Alva apareceu no meu quarto, nua e tresloucada. Queria que fizesse amor com ela mais uma vez. Dizia que se sentia as entranhas em fogo e que precisava que eu a apaziguasse. Recusei, uma e outra vez. Alva enforcou-se nessa mesma noite. Com o véu que lhe cobriu a face durante tantos anos. Alva foi a enterrar, o véu desapareceu e nunca mais tive descanso desde então."
-Obrigado meu amor, por te teres revelado a mim de forma tão íntima.
Gina beijou Thomas longamente enquanto se envolviam num abraço, tentando que os seus corpos nus se tocassem na maior parte de pontos possíveis. Thomas derramou uma lágrima que Gina logo lambeu da sua face.

Romantismo

Toda a sucessão de imagens do passado dava a Gina a força que precisava para continuar a massajar o peito de Thomas, conferindo às suas frágeis mãos uma força que desconhecia.
- Vive Thomas, vive! Não me podes deixar aqui entregue ao passado, por favor vive!
Soprava-lhe uma dádiva de ar sobre os lábios, enquanto a massagem de reanimação prosseguia, impiedosa, já não dependendo de si. Era alguém que movia os braços por ela, alguém superior a ela. Gina chorava, mas as lágrimas eram agora a sua voz que gritava por ajuda.
Foi como num sonho que viu entrar ajuda e como num sonho que foi também ela carregada em braços para longe dali.
- Salvem-no, façam alguma coisa, ele não pode morrer, não nos meus braços! Eu tenho que amar, eu ainda consigo amar…
E tudo ficou negro como um manto de noite sobre os seus olhos molhados.
Gina acordou o que podiam ser dias ou meses depois. Um quarto demasiado claro, demasiado branco atordoou-a por breves instantes antes de se aperceber que alguém a seu lado a velava.
- Thomas?
E um sorriso sofrido confirmou-lhe a suspeita. Aquele homem outrora forte e determinado estendia-lhe agora uma mão frágil e magra, afagando-lhe o rosto.
-Salvaste-me Gina… Mas sofreste uma emoção tão forte que caíste num sono profundo.
- Quanto tempo? Há quanto tempo é que estou aqui? – Tentava sorrir-lhe de volta, mas não conseguia.
- Há dois meses minha querida. – Aquele era mesmo o dono de Netherfield, frio e distante? Parecia-lhe transformado, talvez pela emoção quente que só o amor confere.
- E tu? Como é que estás?
- Referes-te à parte de mim que me faz mais homem?
Gina anuiu sem sombra de embaraço.
- Sou agora menos homem Gina. Tiveram que optar entre a minha virilidade e a minha vida. Estou vivo, mas menos eu. – Os seus lábios donos de uma quentura desconcertante beijaram-lhe a palma da mão que se arrepiou.
- E o Daniel? Ele, ele foi preso? O que é que lhe aconteceu?
- O Daniel está internado numa instituição para doentes mentais, mas em breve vai ter alta. Os velhos fantasmas de Netherfield nunca mais apareceram para me atormentar, anda tudo estranhamente calmo desde a catástrofe.
- Talvez tenham tido a sua vingança. - Gina queria acreditar nas suas próprias palavras.
Thomas desviou o olhar, como se escondesse alguma coisa e colocou os seus lábios sobre os lábios de Gina, quase como numa carícia. Foi com deleite que Gina deixou que a língua dele reconhecesse cada recanto da sua boca. Deixou-se beijar, sem tomar parte do processo, gozando apenas a sensação de se sentir completamente preenchida em tantos sentidos além da carne...

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Deita cá pra fora!!

"E eu, e eu?" dizia numa voz tão fina que arrepiava, o pénis agora separado do seu amo e senhor De Netherfield, "E agora quem me afaga, quem me dá carinho? Sinto-me tão sozinho..." enquanto derramava lágrimas espessas e leitosas do seu olhinho único, qual Cyclops fálico.
(Não tenho o que escrever no "Cheirinho...")