Há quem goste delas curtas, há quem as aprecie mais longas, mas para nós o tamanho não importa, uma história merece sempre ser contada.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia.

Pai nosso que estáis nos Céus.
A força da fé no Senhor me dê forças para as provações que terei ainda de passar mas feliz daquele que sofre por Deus, como ele por nós sofreu o martírio da crucificação. Porque hoje estive no covil do mal. As mãos doem e tremem ao escrever estas letras, como se tivessem sido queimadas pelo fogo do próprio Inferno. Enquanto rezava as orações de mãos dadas com aquela mulher, as mãos ardiam num fogo invisível. Ela não tem a marca do mal nas mãos, confirmei, antes a maldade está dentro dela. Vive dentro dela, alimenta-se dela e através dela se espalha aos corações das minhas ovelhas.
Confesso, meu Deus, que rezava para que me désseis força para suportar a dor daquele fogo que me atravessava através das minhas já frágeis mãos. Rezava por mim e não para combater aquele terrível mal. Sucumbi perante a violência daquela força. As vozes das almas condenadas flagelaram a minha mente, como sempre o fazem quando abandono a Igreja. Malditos sejam os inimigos do senhor. Este mal que nos ataca é enorme. Invadiu já a Casa do Senhor mas o covil fica naquela casa. A puta do Diabo chorou lágrimas de dissimulação mas eu bem vi o seu olhar vazio, as sombras a olharem-me por trás dos olhos dela. As suas mãos eram frias, como as de um falecido após a noite de velório em cima da pedra mortuária. Frias mas ao mesmo tempo queimavam como um ferro em brasa. São estas as contradições e a perfídia de Lúcifer.
O povo apercebe-se já do mal que emana daquela casa. Fazem-se vigílias e procissões em redor dela. Os cânticos dos vossos servos entoam agora pela noite. A luz da casa apaga-se mas, sem luz lá dentro, os homens quebram na sua determinação. Dizem que ela silva, como uma serpente, que leva a noite, que se apagam as estrelas, que sentem um frio no peito como se o coração tivesse parado, que se sentem vazios por dentro e temem. Temem mais ao Diabo que a Deus.
Mas a raíz de todo o Mal está dentro dela. Enquanto fervorosamente rezava por mim, pela minha salvação, consegui ouvir a sua voz dentro de mim. "Temes-me já e ainda nem nasci. Mas nada temas, serás o meu escravo assim que eu nascer. Verás todo o teu rebanho a perecer perante a minha força e, mesmo assim, servir-me-ás!". Estas palavras ressoavam por todos os meus ossos, toda a minha carne, corpo de Deus. E o riso, o riso que gela e nos rouba a vontade, a força nas pernas e oprime o peito. Não estava preparado Senhor para tamanha força. Hoje mesmo apertarei ainda mais o silício que trago na perna para que sangre o Sangue Divino através do qual purificarei as almas mais preversas!
Aquela criança é Lúcifer. O mal personificado puro e frágil. Tem de morrer! Pelo meu punho, pelo punho de Deus! Deus Pai Todo-Poderoso que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós.
(Diário do Vigário, 22 de Novembro de 1951)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia.

Hospital Psiquiátrico de São João de Deus
Serviço de Internamento de Doentes Agudos
Diário Clínico
10/12/1952: O doente apresenta-se sem alterações do seu estado. Mantém-se em mutismo, não colabora nos cuidados. É extremamente agressivo e violento para com os profissionais de saúde que considera como inimigos. Verbaliza apenas quando "ataca" o pessoal. Passo a citar:
"Cambada de filhos da puta nojentos haveis de morrer nos fogos dos infernos de onde saíram"
"Nunca me vergarão, cabrões"
"Matem-me de uma vez seus filhos de uma cabra sarnenta"
A um dos enfermeiros arrancou uma orelha com uma dentada. Mantém-se contido no leito com correias de couro no tórax e membros inferiores e ainda com o colete de forças vestido.
Foi aplicado o protocolo terapêutico de electrochoques diários, sem resultados visíveis. No final de cada sessão o doente apresenta-se prostrado, sonolento e aparentemente calmo. Neste curto período de tempo verbaliza repetidamente a seguinte frase: "Hei-de regressar para te salvar.". Não foi possível estabelecer o significado dessas palavras. Contudo o doente regressa aos seus delírios e confabulações logo que retoma a plena consciência. Não há registo de qualquer outro esquizofrénico que seja tão refractário ao tratamento. O doente parece adaptar-se a cada tratamento, a ponto de, actualmente não parecer sofrer qualquer tipo de desconforto com as descargas eléctricas cada vez mais potentes. Chega a parecer sobrenatural.
A ferida no deltóide mantém-se por cicatrizar. Após uma semana a receber injecções de penicilina (2.400.000 unidades), a ferida mantém sinais inflamatórios exuberantes com expulsão de pus. Aparentemente sem dor, o paciente parece estar infectado com qualquer tipo de bactéria resistente à penicilina, o que será caso único na literatura médica conhecida. Mantém-se tratamento. O doente apresenta agora traumatismos múltiplos no corpo. Na sessão de tratamento de ontem, o doente conseguiu libertar-se do colete de contenção e tentou uma fuga, atirando-se pela janela da sala de tratamentos. Foi perseguido e apanhado já fora dos muros do hospital pelos enfermeiros que assistiram à tentativa de fuga. Na ânsia de escapar, correu de encontro ao portão e embateu com a cabeça no mesmo. Perdeu a consciência por traumatismo craneo-encefálico que aguarda evolução. Mantém as correias de imobilização no leito. Mantém esquema de electrochoques. O doente é considerado perigoso para a sociedade e se este esquema de tratamento não for bem sucedido pondera-se a sua institucionalização em hospício com medidas de contenção permanentes.
O médico psiquiatra,
(assinatura ilegível)

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia 22

S. Vicente da Lua, 22 de Novembro de 1951
Página número 29 do Diário Pessoal de Joana Espinho

Querido Diário
Hoje chorei muito. Chorei como não chorava desde que me lembro. O vigário apareceu aqui ontem à noite e cedi ao seu abraço misericordioso. É o único que não me vira a cara na aldeia, que não me julga, quando é certo que cometi mais do que um pecado capital.
Todo o ambiente estranho que nos envolveu na capela se dissipou aqui em casa. Orámos com muito fervor, lemos passagens da Bíblia que pareciam escritas para mim, conversámos sobre o sentido das coisas e o Vigário pareceu mais sereno do que ontem de manhã. Pediu-me para ver as palmas das mãos, mas nada encontrou. Não lhe falei da estranha marca sobre o meu ventre que aparece e desaparece ao sabor do dia e da noite.
Deixou-me Água Benta para que me benzesse todas as manhãs e assim o vou fazer, bem como passá-la sobre a marca rosada no bucho, pois sei que nesta altura apenas Ele me pode valer.
Hoje os meus alunos pareceram menos cruéis e, apesar de no caminho de regresso a casa, alguns deles me terem seguido e jogado pedras, foram menos os que participaram no “linchamento”.
Estou convencida de que ouvem em casa aquilo que me gritam pelo caminho e certa de que quando me chamam puta nem sabem o que essa palavra quer dizer.
Segurei o meu rosário com todas as forças e caminhei de cabeça erguida, o que pareceu deixá-los um pouco atordoados, habituados como estão a ver-me gritar e perder as estribeiras.
Pensei muito no Júlio e em como seria bom tê-lo aqui perto de mim, mas não posso, não devo ceder à tentação. Para o bem e para o mal já tomei a minha decisão, vou entregar esta criança quando ela vir a luz do dia. Certa de que será mais feliz longe daqui, deste negrume que nos afunda a todos.
Ainda não falei com o Vigário sobre esta minha decisão. Talvez ele me possa ajudar se for um menino, dá-lo para os padres criarem no Mosteiro das Levadas. Se for menina eu mesma a entregarei num convento e quem sabe não pedirei para ficar também eu em voto de clausura.
Enquanto te escrevo escuto os ruídos lá fora e sei que vou passar mais uma noite em claro, possessa de horror. As cantilenas e preces na língua que desconheço parecem munidas de mais vozes a cada noite que passa. Quero encher-me de coragem para espreitar lá para fora, mas ainda não consigo. Chego a temer pela minha vida. Sinto que tudo piora todos os dias. Tudo menos a minha fé que foi resgatada dos confins de mim mesma pelo meu santo Vigário.
Vou ficar por aqui, pois as velas pouca serventia me dão. Esmorecem e apagam-se sempre à mesma hora. À hora dos cânticos. Sei que eles se aproximam, pois as velas já pouca chama queimam. Amanhã volto a ti querido Diário, até lá rezo para passar desta noite.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia.

(Correspondência nunca expedida.)
Penhas da Saudade, 21 de Novembro de 1951
Minha querida e Santa Mãezinha,
Espero que estas breves letras a encontrem de boa saúde, a mesma com que a deixei quando parti nesta viagem que agora me parece tresloucada. Quero que saiba o que se está a passar porque não estou certo que algum dia vá regressar o mesmo Júlio que viu partir. Cheguei ontem às Penhas da Saúde a não são bons os augúrio que vêm de S. Vicente. O velho comboio que fazia a ligação até ao apeadeiro de S. Vicente já não sai da barracão onde se resguarda e os homens das Penhas não vão até S. Vicente. Dizem que o mau-olhado paira sobre as casas e os campos da aldeia. Alguns dos jovens com o sangue mais quente aventuraram-se até ao campos dos homens da aldeia mas não foram capazes de lá entrar. Dizem que o nevoeiro é cerrado, que não se vê vivalma. Os poucos que se atreveram a entrar nos domínios do nevoeiro perderam-se e voltaram mudos para as Penhas. Ninguém fala de S. Vicente, é como se a aldeia tivesse deixado de existir. Ninguém está disposto a ajudar-me a atravessar os montes até chegar ao meu destino.
Na tasca das Penhas conta-se a história de um homem louco e bêbado que passou por aqui, vindo de S. Vicente. Um homem que contou histórias de morte e lutas. Um homem que falava no Diabo como se o tivesse visto com os seus próprios olhos. "Um maluco!" disseram-me, mas o certo é que este homem foi corrido das Penhas sem que ninguém, ninguém lhe tenha dado uma côdea de pão. Tentei identificar o homem, pois loucos é coisa que nunca houve em S. Vicente mas nada mais consegui que louco, desdentado, sujo, ladrão de chouriços e do fumeiro que entrava à socapa nas casas abertas. Há quem jure que esse homem trazia as mãos manchadas de sangue, que estava possuído. Também me contaram de como o levaram ao padre das Penhas, para que o benzesse, e de como ele silvou como uma serpente e cuspiu para o padre. Deram-lhe uma tareia e abandonaram-no no monte.
Mas, minha querida mãe, a razão porque lhe escrevo é outra. Desde que cheguei aqui que a dúvida me assalta. Serei covarde talvez mas, que faço eu? Que loucura é esta que me preparo para fazer? Deixar Lisboa, a minha casa, o meu trabalho? Atrás de um filho que eu nem sequer sei se existe? Atrás de um filho que pode até nem ser meu? Afinal de contas, há quanto tempo saí eu de S. Vicente? Tanto quanto julgo saber, Joana esteve sempre só durante esse tempo. E se procurou outro homem para se aquecer nas noites frias do monte? Eu bem senti o calor daquela mulher, minha mãe. Joana não é mulher para ficar sem homem durante muito tempo. Pouco tempo depois de nos namorarmos já estava na cama dela, ela por cima de mim, meneando-se, pedindo-me que lhe lambesse as tetas e lambendo-me o peito. Perdoe-me a franqueza minha mãe, mas uma mulher honrada não tem estes comportamentos. Pensei que estava apaixonado mas agora já não sei... Mas, acima de todas estas dúvidas, está um sentimento. Uma espécie de vazio no estômago, um arrepio na espinha que me atormenta desde que pus pé nas Penhas. Um sentimento que este filho, o meu filho, será também a minha desgraça.
Que Deus a tenha em Eterno Descanso minha mãe. Amanhã parto em direcção aos montes das Penhas. Que estas palavras, estas dúvidas que me ensombram a alma a encontrem no seu lugar no Céu. Que a sua sabedoria me guie na hora em que tenha que decidir.
Para sempre saudoso, o seu filho
Júlio.



O Inverno e a Aldeia 20

Correspondência Pessoal
S. Vicente da Lua 21 de Novembro 1951

Meu caro, mais uma vez lhe escrevo na qualidade de amigo e penso que não será preciso pedir-lhe que guarde as minhas missivas como a um segredo de confissão.
Hoje procurou-me uma jovem cheia de dor, recentemente chegada à aldeia, sem família por perto e com um fardo demasiado grande para carregar apenas com as suas mãos. Não deixou de me comover a sua busca de conforto precisamente aqui, na Casa do Senhor. Pois numa altura em que todos os fiéis parecem correr na direcção oposta à minha, esta jovem buscou-me, procurando respostas, compreensão.
Carrega no ventre um filho cujo pai não quis nomear e achei por bem não insistir em querer chamá-lo à razão, pois senti-a irredutível nesse ponto. Como se quisesse proteger o pai da criança do mesmo infortúnio que parece tê-la atingido.
Mas o que me levou a escrever-lhe não foi a história desta jovem e a sua criança, foi sim a certeza mais do que absoluta que estive perante a presença de uma força cheia do mais negro que há.
No frio da capela (já lhe disse que o Fernando Lenhador deixou de me fornecer de lenha) enquanto conversávamos de mãos dadas, senti que as suas mãos ardiam. Não a quentura usual da pele, mas mais. Um ferver, uma labareda, um calor quase insuportável que me obrigou a soltar-me sufocando um grito de dor. Ao olhar as palmas daquelas mãos brancas de leite duas enormes chagas rosadas e salpicadas de negro cobriam toda a sua superfície.
Ao perguntar-lhe se as tinha há muito ela fingiu-se desentendida, que não as via, que nada sentia. Mas como? Perguntei, se elas estão aqui, se queimam?
O seu olhar meio tolo fez com que acreditasse que de facto não as via. Que só aos meus olhos surgiam aquelas hediondas chagas. Na mão esquerda uma cruz invertida, na mão direita três números 6 seguidos formando o número da besta.
Ao pedir-lhe que mergulhasse as mãos em água benta, assentiu pacificamente e quando emergiram do líquido que purifica tudo desaparecera. Tudo menos o negrume que se apoderara do seu olhar.
Foi como se tudo tivesse passado da pele para os recantos escondidos da sua alma. Aquele olhar que me fitava num desafio, chamando-me para dentro de si, deixou-me muito abalado e de nada lhe servi. Nenhuma ajuda lhe prestei.
Sinto-me o pior dos descrentes. Se esta jovem tem alguma espécie de demónio dentro de si, cabia-me a mim apaziguá-la, mas emudeci, aterrorizado. E na superfície líquida do seu olhar o lado branco ficou negro como breu e a sua voz soou grossa como a noite catapultando-me para a mais vil das cobardias que me levou a expulsá-la da casa do Senhor.
Esta noite mesmo terei que me redimir. Procurarei a jovem Joana e juntos descobriremos uma solução.
De qualquer forma gostaria de dar inicio aos procedimentos para poder exorcizar esta alma. Junto seguirá um pedido de autorização que espero que reencaminhe a quem de direito. Mas desde já lhe desabafo que com, ou sem autorização superior, tenciono fazer tudo o que estiver ao meu alcance para libertar esta jovem e a criança que carrega, do domínio do mal.
Seu servo e amigo
Alberto

domingo, 15 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia 19

Meu Querido Diário
Depois de uns dias de indisposição que me atiraram à cama, regressei à escola. Escondi o melhor que pude o ventre que me encurta já os vestidos e de peito erguido enfrentei os olhares a que já me acostumei.
Todas as noites rezo por uma solução, Deus me perdoe, por um desfecho natural a este meu estado. Já pensei pedir à tia Maria das Dores que me desse a tragar uma das suas mezinhas, mas falta-me a coragem e penso ir já muito adiantada no tempo para poder desmanchar o que fiz.
Os meus alunos falam de mim de cada vez que me viro para a ardósia e sinto os olhares dos habitantes cada vez mais enraivecidos na minha direcção.
Podia jurar que me fazem uma espécie de vigília durante a noite, pois escuto cantilenas bem próximas da minha porta. A falta de coragem leva-me a fechar todas as janelas e esconder-me debaixo das cobertas, por isso ainda não pude confirmar as minhas suspeitas. Mas quando amanhece encontro rastos de cera e vestígios de velas ardidas espalhadas em redor da casa.
Que mal me quer esta gente sisuda e como estou arrependida por ter trilhado o caminho que me trouxe aqui.
O meu amado continua longe e sem saber que espero um filho, não tenho amigos, não tenho posses além do pouco que ganho na escola e não sei que passo dar além de um pé à frente do outro todos os dias.
As forças faltam-me. Amanhã falarei com o Vigário. Não sei porquê, mas alguma coisa me diz que é nele que devo buscar conforto...

20 de Novembro de 1951

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia.

(Documento nº 657, Tipo: Arquivo Liturgico, homilia proferida em 10 de Novembro de 1951)

Corações ao alto! Nosso coração está em Deus! Seja feita a sua vontade!
Fieis! A nossa terra foi envolta por uma névoa de maldade! Não vos enganeis, pois é o mal que nos envolve silenciosamente! À data da minha chegada, o rebanho era próspero e feliz e caminhava nos trilhos de Deus, mas hoje o rebanho está perdido... Procurei no meu coração a razão da perdição dos servos de Deus, julguei ser eu a razão da debandada dos nossos irmãos para a vida desregrada da grande cidade. Mas não! O Senhor é meu Pastor e mostrou-me o caminho...
Esta semana visitei vossas casas, uma a uma. Assisti ao sofrimento que trespassa o coração das gentes da nossa terra, o frio que envolve todas as casas, a morte que tocou já quase todas as famílias da nossa aldeia. Mas uma casa, apenas uma casa não estava cheia com este sofrimento. Nesta casa havia música... MÚSICA POR DEUS!! Quem se atreveria a trazer para este nicho de santidade e devoção um instrumento de Satã? A purificação dos pecados vem pelo sofrimento, pela abstinência, pelo sacrifício! Apagai a réstia de alegria que viver nos vossos corações pois adivinham-se tempos de abnegação... Onde estão os nossos irmãos desaparecidos misteriosamente na floresta? Onde estão o Manuel, o António, o Joaquim, o Ernesto? Não há notícia de vida mas não há notícia de morte. Em que limbo estarão as suas almas perdidas? Aqueles que morrem em pecado sem culpa, vaguearão para todo o sempre nos corredores do limbo de Nosso Senhor, Nosso Deus. Mas nessa casa havia algo mais. Algo mais forte, mais poderoso, mais insidioso que a canção de Lúcifer debitada pela voz mecânica... Não... senti algo. Algo me possuiu como se eu fosse uma marioneta. Era uma voz estridente que ria como louca. Dizia-me "sim Vigário... estás na casa do Escolhido... ele vem a caminho para tomar todas as almas do teu rebanho..." e uma criança chorava, chorava mas depois ria, ria estridentemente!! Eu vos digo, vem aí o Maldito, o Portador da Chave do Inferno, o Príncipe do Apocalipse!!!
Pensem, pensem em quando a desgraça se abateu sobre as nossas casas... Quem chegou, de novo, a esta bendita terra? Foi ela que trouxe consigo o nevoeiro, o frio, a morte... Ela é a Mãe do Maldito!! Ela vai parir o mal aqui, na nossa bendita terra!! Eu sei! Eu vi com os meus olhos iluminados por Deus, vi-a a parir o mal em forma de criança, olhos deitando chispas de ódio, uma criança que não chora, só ri! E o seu riso enlouquece quem o ouvir e obriga as gentes a matar a gente do seu próprio sangue. Eu lutei com ela nesse dia, naquela casa. Mas ganhei! Eu que sou o arauto da boa-nova, sou a Espada de Fogo na mão direita de Deus, sou o Arcanjo em carne mortal de homem. Eu fui o enviado para lutar com o Maldito. A Lei de Moisés é clara: a mulher adúltera será executada por lapidação!! Essa mulher traiu a Deus concebendo uma criança com o Diabo, uma criança sem pai, sem alma, sem Deus. Marcharemos para o seu covil e apedrejaremos a traidora até à morte. Eu atirarei a primeira pedra.

domingo, 8 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia.

HOSPITAL PSIQUIÁTICO SÃO JOÃO DE DEUS

SERVIÇO DE INTERNAMENTO DE DOENTES AGUDOS
Relatório de Admissão.

NOME DO DOENTE: Não identificado
IDADE: não identificada

Doente do sexo masculino, idade não especificada presumivelmente situada entre os 25 e os 30 anos. Não foi possível colher antecedentes clínicos e familiares. Os exames clínicos efectuados não revelaram qualquer alteração.
Trazido ao hospital por mau estado geral, mal nutrição e alterações do comportamento. À entrada apresentava-se em mutismo, com comportamentos de agressividade perante os profissionais de saúde. Foram tomadas medidas de contenção físicas (camisa de forças e correias de contenção no leito) e foi medicado com terapêutica ansiolítica e neuroléptica (haloperidol).
Exame físico: cuidados de higiene precários. Apresenta-se globalmente sujo, cabelo muito sujo e emaranhado (manda-se rapar o couro cabeludo), as unha estão sujas de terra, os dentes apresentam-se cobertos por placa bacteriana com alguns dentes ausentes e muitos fracturados. Apresenta equimoses disseminadas pelo tronco e abdómen e também nas pernas. Presume-se que causadas por agressão. A diferente coloração entre elas sugere que o doente foi sujeito a traumatismos vário em diferentes momentos temporais, de forma continuada. Apresenta-se emagrecido, o cabelo quebradiço. Presume-se algum tipo de deficiência nutricional. Foi encontrado em muito mau estado junto à casa de um lavrador e foi transportado até ao hospital. Foram referidos comportamentos agressivos e um discurso de repetição: "Nunca me irão apanhar vivo, nunca me irão apanhar vivo." (Fim de citação). Neste momento está em recusa de comunicação, não fala, não olha para o interlocutor.
Apresenta uma única ferida recente, ainda em fase de cicatrização. Trata-se de uma ferida compatível com mordida de animal no músculo trapézio à direita. Prescreve-se a vacina anti-tetânica e penso diário.
A primeira observação do doente, juntamente com os relatos dos acompanhantes levantam desde já algumas impressões diagnósticas, a saber:
Esquizofrenia?
Psicose Maniaco-Depressiva?
Delírio Persecutório?
Prescreve-se:
Contenção física no leito
Terapia de Electrochoques
O Médico Psiquiatra
(assinatura ilegível)
HPSJD em 5 de Dezembro de 1952

sábado, 7 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia 16

17 de Novembro, 1952

Minha querida Conceição, só te rogo uma coisa: não voltes. Não olhes para trás. Não sei se chegam à capital notícias desta terra por Deus esquecida, mas não devem chegar. Esta aldeia está a deixar de existir aos poucos, e não estranhes se um dia deixares de receber notícias minhas. Faço as minhas orações todos os dias e estou em paz com o Senhor. A única coisa que me apoquenta é o não mais me confessar. Isso deve ser uma surpresa para ti, pois desde a primeira eucaristia que o fazia todas as semanas. Mas deste que o outro padre foi substituído, que não sei quem está por trás da cortina do confessionário.

Sei sim, filha, que Deus não é. Por isso, agora resolvo os meus pecados directamente com Ele, em oração, na esperança que me perdoe.
Deves estar-te a perguntar se ainda vou à missa. Vou, querida, da casa do Senhor não me posso afastar. Mas digo-te aqui, nesta missiva que só tem a ti como destino, que não sou capaz de olhar para o altar. Olho para a Santa Cruz e para a Virgem acima, mas para o altar, não.
E recebo a hóstia de olhos fechados. Quem ainda vai à missa faz o mesmo.

Bem, minha querida, vou-te deixar em paz com estes achaques de velha da aldeia, que nada disso deve interessar-te. Tenho de ir visitar a prima Joana e levar-lhe uma mezinha, que ela, e isso é um segredo que te conto porque sei da vossa amizade, está de esperanças. Sabes que não sou como as outras mulheres cá do sítio e não atiro a primeira pedra. Para mim, esta criança é filha de um amor honrado e abençoado por Deus, embora não consagrado. Mas é uma questão de tempo, tenho a certeza.
Já escrevi ao Júlio e espero que ele chegue antes que o ventre da moça se faça notar.
Tenho medo que ele não tenha recebido a carta, pois já recebi duas tuas depois de lhe ter escrito a ele.
Mas Deus vai trazê-lo a tempo de evitar os falatórios.

Quanto ao Joaquim, meu amor, acho que o viram para as bandas de Nossa Senhora dos Pinhais, e de Obradeiro. O que se diz dele prefiro não escrever aqui. Tenho a certeza de que são boatos.
Afinal o Joaquim desapareceu antes de o Inverno chegar tão cedo a esta aldeia.

Com muito amor, da tua tia que te roga: não voltes.
Não voltes nem por amor.

Maria das Dores

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia 15

Lisboa, 1 de Novembro de 1952
Documento nº42 – Caixa 17 – Correspondência Pessoal

Querida tia
Espero que esta carta te encontre de boa saúde, só Deus sabe como me custa estar afastada de ti, afinal de contas foste tu que me criaste de gaiata, desde a morte dos paizinhos e até hoje não conhecia a distância entre nós.
Gostava de te dizer que tem sido fácil a vida aqui na capital, mas não posso, não consigo mentir-te e mesmo que tentasse, certamente me lerias nas entrelinhas e perceberias que trouxe de S. Vicente a mágoa que quis abandonar.
Comigo veio o sonho dos palcos, mas veio também a culpa de ter deixado para trás os que me queriam bem, tu sabes de quem falo...
Ele deixou de dar resposta às minhas cartas e o único medo que tenho no coração é tê-lo ferido de morte, mas tive que o fazer. Conheces-me, sabes que não nasci para ficar na sombra de um casamento e o ensino há muito que não me trazia felicidade. Se não tentasse definharia em S. Vicente e comigo definharia ele tentando fazer-me feliz.

Mas deixemo-nos de lamúrias que a vida não é dos queixosos, amanhã vou prestar provas para uma revista. Se gostarem de mim participarei num papel pequeno, mas ao lado dos grandes. Reza por mim tia, pode bem ser o primeiro passo de muitos que se seguirão e se tudo correr bem quem sabe não te mando vir. Já nos imaginaste de braço dado pelos jardins da cidade como duas senhoras de bem?
Vivo num quarto pequeno em casa de uma viúva mal humorada e com buço, mas sei que em breve a minha sorte vai mudar e não precisarei de um casamento conveniente para me sustentar. Eu vou ser dona de mim.
Se as coisas aí na aldeia continuarem pesadas como o manto negro do infortúnio vem querida tia, não hesites em deixar S. Vicente para trás. Percebi há muito que essa aldeia nada faz além de nos botar raízes de tristeza nos pés e de nos amarrar a uma vida de suspiros.

Da tua sobrinha que te quer bem
Maria da Conceição

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Alteração à nossa programação...

Do "blogonovelencontro" surgiram algumas ideias novas para a história "O Inverno e a Aldeia". Pela primeira vez na história do blog teremos uma história pensada e discutida pelos autores, em vez do normal "jogo do empurra" em que cada um tentava surpreender os outros com voltas e acontecimentos inesperados no enredo. Assim, os capítulos já escritos da história serão revisitados e alterados para que esta história (que julgamos com muito potencial!) ganhe a qualidade que pretendemos para ela. Seremos capazes? Não sabemos, mas morreremos a tentar!!!
Estejam atentos...