Há quem goste delas curtas, há quem as aprecie mais longas, mas para nós o tamanho não importa, uma história merece sempre ser contada.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Aviso à Navegação

Queridos Leitores. E porque também podemos escrever posts que não sejam a continuação da história. Escrevo este para vos dizer que, entre peste suína, medo de andar de avião, terror de ficar presa num alerta de pandemia nível 6. Amanhã parto para a Suécia e juntamente comigo vão Alzira e Prudêncio. Não tenho grande disponibilidade para continuar o episódio que o Miguel deixou no ar. Agora só quando regressar.
Miguel se te quiseres aventurar na continuação a casa é tua :)
Quanto a vocês se quiserem deixar sugestões força!

terça-feira, 28 de abril de 2009

Eu Quero Matar a Minha Mulher: 605 Forte

Prudêncio abafou uma gargalhada que pareceu ter vida própria quando lhe saiu disparada pela boca. Com uma destreza manual e de raciocínio que lhe pareceu estranha, agarrou no saco de veneno para ratos que se lhe apresentara em tão boa altura e despejou duas colheres se sopa do pó mortal para dentro da chávena de café de Alzira. "Para os ratos era preciso uma colherinha de café, por isso estas devem ser suficientes...". O café borbulhou por instantes e Prudêncio adicionou bastante açúcar. "Não querias o café doce?? Vai bem docinho....". Voltou-se para Alzira sem conseguir disfarçar o sorriso que lhe permanecia indelével nos lábios. "Lá estás tu com essa cara de parvo... já te conheço, pá! Se descubro que andas a tramar alguma... levas tantas no focinho que não vais ter vontade de rir por muito tempo!". Calmamente, sem temor Prudêncio deu a chávena de café a Alzira que a devorou em segundos. O silêncio da cozinha deixava ouvir o barulho que Alzira fazia a deglutir o café. Um som demasiado semelhante ao que os esgotos da casa de banho faziam quando despejava a banheira depois do banho. Os olhos brilhavam ao ver o veneno desaparecer bem fundo nas tripas da velha matrafona maljeitosa!
"Finalmente um belo café, homem!! Não te imaginava tão jeitoso mas isso só prova que só aprendes à porrada... enfim, a partir de agora fazes sempre o café assim. Isto se não queres que to enfie nas trombas ainda quente." Prudêncio via os lábios de Alzira, emoldurados pelo bigode lustroso pelo sebo de muito bacon, a mexer mas não ouvia nada. A sua mente imaginava já Alzira a agarrar-se ao pescoço, os olhos a querer saltar das órbitas, a face a ficar roxa e depois preta, a rolar no chão respirando ruidosamente e a espumar da boca, a borrar-se e a mijar-se toda, a suplicar por ajuda tentando agarrando-o com os braços prostrados em desespero enquanto ele gritava "Morre porca, MORRE!! Ah, Ah, Ah!!!". Acordou com um berro de Alzira e só depois pensou que nunca tinha visto ninguém morrer daquela forma. Andava a ver muitos filmes. Esperou e... nada! Alzira mantinha-se firme como sempre. Devorou todo o bacon e ainda pediu mais café (que levou o mesmo tratamento do anterior) e não aconteceu nada. Prudêncio amaldiçoou a sua sorte. "Será possível que esta mulher não morre?!?! Mas que raios! Bem dizem que vaso ruim não quebra...", os seus pensamentos foram interrompidos quando Alzira se levantou, derrubando a mesa e correu para a casa de banho. Prudêncio conseguia ouvi-la a vomitar, uma vez após outra, e depois sentiu o cheiro fétido da merda líquida que lhe jorrava em jacto do olho do cu peludo. Prudêncio nem sentia a aura de esgoto que agora empestava a casa. "Não era isto que imaginava mas se vais esvair-te em merda até morreres, tanto melhor!! Que sofras o máximo possível e, afinal, sempre foste uma mulher de merda e morrerás numa poça de merda." Alzira saiu do WC e parecia menos mulher. Pálida, os olhos encovados, vergada e encostada ás paredes. Parecia até mais magra. "Que raio de café de merda fizeste, meu cabrão??! O bacon devia estar estragado... como sempre não posso confiar em ti, minha amostra de homem, filho de uma puta sarnenta que não te conseguiu abortar... é isso que tu és, um desmancho mal feito!" Dirigiu-se para o quarto apoiando-se nas paredes e nos móveis velhos e empoeirados do corredor. Derrubou todas as figuras de bonequinhas e passarinhos que tinha em cima desses móveis, juntamente com os naperons que lhes serviam de base, enquanto grunhia mais alguns insultos a Prudêncio. Era o que fazia sempre.
Aquele dia passou, Alzira já nem se dava ao trabalho de ir à casinha cagar ou vomitar. Sacou do velho penico de porcelana que jazia esquecido debaixo da cama e fazia ali mesmo, berrando depois para Prudêncio o despejar. Ele começava já a perder a paciência e rogava pragas para tentar acelerar o processo. Mas Alzira não morreu. Ao outro dia acordou sã que nem um pêro e, antes de abrir a boca, pregou-lhe um estalo tão grande que Prudêncio cuspiu um dente podre que teimava em permanecer no seu buraco. Ele estranhou aquela ausência, passava o tempo a passear a língua pelo local onde antes estava o dente preto e esburacado que se enchia de comida a cada refeição. Esperou que Alzira saísse da cozinha para a sua rotina de higiene que consistia em lavar a face, os sovacos e "por baixo". "Todos os dias que eu sou mulher asseada." gostava de pregar nas conversas de mulheres. Abriu o armário e pegou no saquinho prateado. Cheirou, parecia-lhe um pouco menos intenso e procurou a data de validade: 01/1999!!! "Dez anos?!?! Isto está aqui há 10 anos?? Estúpido, estúpido, estúpido!! A ânsia de a matar é tão grande que nem vês os meios falíveis que utilizas. Pensa homem, pensa... sabes mais do que ela te quer fazer acreditar..." Mas, por outro lado, não deixou de se rir ao lembrar-se da valente caganeira que tinha causado a Alzira. Riu-se por um pouco e descansou. A próxima vez seria bem planeada. Só tinha de procurar uma forma mais eficaz de lhe limpar o sebo. Sentou-se a ler o jornal do dia e, num canto da primeira página, uma pequena notícia chamou-lhe a atenção: "Casal de idosos encontrado morto em sua casa". Procurou rapidamente a página mencionada e leu o resto da pequena notícia: "Um casal de idosos foi encontrado morto esta manhã em sua casa. Estavam os dois na cama, sem sinais de assalto ou violência. Os bombeiros encontraram o esquentador ligado mas sem ventilação adequada. Pensa-se que a causa de morte tenha sido intoxicação por monóxido de carbono. É frequente uma vez que esta gás não tem cheiro e é invisível. As vítimas não se apercebem que estão a ser envenenadas e adormecem nos braços da morte.". Prudêncio fechou vagarosamente o jornal. Os olhos estavam postos no infinito e os seu lábios afilados por um longo sorriso maquiavélico.
Desculpem a demora OK?? Ana... deixo a batata a escaldar nas tuas delicadas mãozinhas de escritora!!! Beijinhos...

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Eu Quero Matar a Minha Mulher - À segunda é de vez

Alzira sentara-se na mesa da cozinha e fitava-o enquanto ele lhe fritava o bacon para o pequeno-almoço. Havia qualquer coisa diferente nele, ela só não sabia bem o quê.
Uma espécie de riso idiota na sua expressão que não estava lá no dia anterior. Prudêncio era submisso na cama, atendia-a, obedecia-lhe sem grande ardor, mas o suficiente para lhe tirar os calores. Agora o que se passara essa manhã era novidade. Ser ele a praticar um bocadinho de dor durante o acto sexual? Geralmente era ela quem lhe batia. Agora o contrário? Decidiu romper o silêncio do bacon a frigir ao lume:
- Que cara de estúpido é essa? O que é que te deu hoje para me enfiares a almofada nas ventas?
Prudêncio treme, pensa rápido:
- julguei que gostasses…
- Gostar que me vomites em cima? Tu estás a mangar comigo? Raça do homem, que besta que me saíste.
Prudêncio enche o prato dela de bacon gorduroso e reza interiormente para que as artérias dela expludam de uma vez por todas.
Ela enfia uma tira escaldante para o interior da boa cavernosa enquanto o fita com olhar de lince.
- Tu estás-me a esconder alguma coisa? É que se eu descubro que estás com ideias…
O bigode dela parecia agora alagado em essência de bacon. Ele escondeu mais um arrepio de repulsa, enquanto se sentava com a sua caneca de café, olhando em volta. Buscando ideias luminosas no interior da cozinha. Mas logo foi despertado por um estalo que quase o virou ao contrário.
- Olha para mim!!!!
- Porque é que tens que ser sempre tão violenta? Começo a ficar farto disto! Tu sabes que ainda olham para mim na rua. Nada me impede de te trocar por outra!
O riso dela propagou-se por cada divisão daquela casa húmida. As gargalhadas eram guturais, deixando ver a comida já mastigada no interior da sua boca.
- Quem é que olha para ti diz lá. Uma merda de um homem como tu. O que é que tu tens que faça virar cabeças na rua? Uma verga murcha e seca, um monte de ossos sem préstimo, duas pernas de alfinete que nem para marcarem bainhas servem de tão finas. Enxerga-te e traz-me mas é café, que só consigo olhar para ti depois de duas chávenas dessa mistela que fizeste!

Prudêncio arrasta-se pela cozinha e de açucareiro vazio na mão abre a despensa para tirar o açúcar.
- Quero essa zurrapa bem doce!
Ele lança a mão ao pacote de açúcar, desta vez rezando interiormente para que o diabetes a leve com gangrena, ou coisa pior, quando bate os olhos no veneno para ratos, pousado na prateleira inferior. Mais uma vez é trespassado por um flash luminoso. E sabe que tem que agir depressa, muito depressa. Um sorriso pérfido molda-lhe os lábios finos e molhados enquanto escuta a mastigação ruidosa de Alzira...

terça-feira, 21 de abril de 2009

Eu Quero Matar a Minha Mulher: touro bravo

Prudêncio usava de todas as suas forças na tentativa de sufocar Alzira. Sentia-se como um estranho na sua própria pele. Aquela decisão rápida, quase impulsiva, ao agarrar a almofada e colocá-la na carantonha disforme de Alzira tinha-o surpreendido. Contudo, uma estranha satisfação percorria-lhe os músculos mirrados mas agora retesados. A sua face sorria, o que contrastava com o suor que lhe escorria pela face, com os músculos da face contraídos, a careca parecia ter aumentado com os sulcos que agora lhe marcavam a testa. Os lábios finos esticados mas afastados um do outro desvendavam-lhe os dentes que raramente mostrava num sorriso, desalinhados, amarelos com uma película seborreica que se apoiava na gengiva preta. Mas, aquela face deixava adivinhar uma realização pessoal, o cumprir de um sonho.

Enquanto apertava a almofada contra a cara da sua esposa, Prudêncio pensava "Vais morrer... vou matar-te... odeio-te! Onde estão os gritos agora? Agride-me agora vaca gorda!!! Julgavas que eu não seria capaz? Porca, monte de banha malcheiroso, balde de merda". Acima de tudo, Prudêncio estava orgulhoso dele próprio. Julgava nunca ser capaz de concretizar uma acção na qual pensava há muito tempo: o assassinato de Alzira. Agora que finalmente tinha ganho a coragem necessária para o fazer sentia-se, após tantos anos, um Homem. Ao montar Alzira daquela forma, como de de um touro se tratasse, agarrando-se com a força das pernas e com a almofada sufocando-a, enquanto ela se debatia para se libertar algo luminoso aconteceu: uma erecção! Sentia-se poderoso e isso excitava-o.
De repente, a sua expressão mudou. As mãos largas, rugosas e excessivamente masculinas de Alzira afagavam-lhe a face exterior das coxas. Conseguia ouvi-la, num tom abafado pelas penas da almofada dizendo "Sim, assim sim homem... queres comer-me à bruta?? Já estou toda molhadinha pelas pernas abaixo..." Ao aperceber-se do toque húmido nas suas pernas não foi capaz de conter-se. Vomitou o jantar em cima dela! Alzira urrou de ódio ao aperceber-se do que a estava a molhar. O touro enfureceu-se e Prudêncio desesperou. Alzira fazia uso de toda a sua força bruta para se libertar. Prudêncio usava os seus 60 kg de peso contra a força bruta de uma mulher de 100kg verdadeiramente enfurecida. Inevitavelmente, o touro venceu. Prudêncio embateu violentamente contra a parede do quarto, sentiu as pequenas saliências pontiagudas do cimento mal acabado cravarem-se na pele. Alzira levantou-se exclamando "MAS QUE MERDA É ESTA??!?!?!". Prudêncio encolheu-se antecipando um pontapé em cheio na cara mas Alzira retirou-se arrastando-se para trocar de camisa.
Prudêncio paralisou por um pouco. Depois sorriu, maliciosamente. Concluíra que tinha a coragem para matar o touro, era só uma questão de tempo até encontrar o meio mais eficaz para o fazer.

domingo, 19 de abril de 2009

Eu Quero Matar a Minha Mulher - Tentativa

Vagueou pela casa a noite inteira a pensar na melhor forma de terminar com o seu sofrimento. Sabia que não ia aguentar nem mais um mês a viver debaixo do mesmo tecto do que aquele ser abjecto. Quando regressou finalmente à cama deles, já vencido pelo cansaço e sem ideias geniais, sentiu o braço dela sobre o seu peito. Já não ressonava. Não demorou muito para que o braço começasse a descer pelo seu corpo. Ele sabia exactamente onde aquela incursão levaria. Tentou afastar-se dela o mais que conseguiu, mas a manápula segurou-o, bem firme.
- Anda cá homem.
O pénis de Prudêncio encolheu em directa proporção com o seu asco. O hálito a tártaro, o buço que parecia esvoaçar, o cabelo oleoso com um capacete de rolos. Não conseguia sequer pensar na mulher que todo o seu corpo começava uma dança no sentido do vómito. Mas a voz dela não o deixou fugir:
- Não vês que estou carecida disso? Anda cá, do que é que estás à espera? És feito de quê afinal? De merda? Anda, monta-me!
Cada palavra dela era uma chapada na sua masculinidade e em vez de uma explosão de desejo, Prudêncio tremia até ao mais íntimo do seu ser.
- Estou cansado. Agora não…
A mão dela acertou-lhe na face corada e podia jurar que dois dentes tinham saído projectados.
- Vem cá. Já te disse que preciso! Ou te pões teso, ou mato-te de pancada e juro que não te deixo um dente nessa cremalheira seu trapo velho, sem préstimo.
Prudêncio trémulo comunicou com o seu pénis, numa linguagem muito deles. Implorou-lhe que se arrebitasse, que desse sinais de vida, que saísse do desmaio, para lhe salvar a vida mais uma vez.
Alzira puxou-o para cima dela como um animal no cio. Ele olhou os rolos que lhe cobriam a cabeça e tentou imaginar uma mulher loira, magra, bem cheirosa. Mas em vão, tudo nele murchava como uma num dia de vento. Até que olhou a almofada atirada para o lado e pensou de uma forma tão veloz que se assustou a ele próprio. Só isso poderia salvá-lo. Seria tudo ou nada. Agora, ou nunca e com as duas mãos a tremerem, agarrou na almofada e colocou-a com todas as forças sobre aquela carantonha diabólica. Pressionou, pressionou, pressionou com toda a raiva, asco, humilhação. Ele tinha que conseguir sufocá-la…

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Eu Quero Matar a Minha Mulher: resolução

Prudêncio era um homem de meia-idade, baixo, magro. Usava óculos de massa preta com lentes grossas e escurecidas. Calvo, tentava esconder a sua alopécia puxando o pouco cabelo que lhe restava, lateralmente, para cima da cabeça ficando com o risco junto ao lóbulo da orelha e apenas uns fios de cabelo sobre a careca luzidia. Os dentes desalinhados faziam com que soltasse grossos perdigotos de saliva e acumulava saliva seca e branca no canto dos lábios. Sempre fora tímido e reservado. A auto-estima era baixa e muito afectada por anos de rejeição por parte das mulheres. O seu casamento com Alzira surgiu porque ele sempre achou que nunca seria capaz de encantar melhor mulher.
Mas Prudêncio era bom homem. Apesar de maltratado por Alzira durante anos, sempre lhe perdoara. Afinal ela fazia-o mais para descarregar as suas frustrações. Afinal, também Alzira não devia nada à beleza e Prudêncio sentia-se na obrigação conjugal de suportar essas provações. Nunca tiveram filhos. Apesar de o médico ter afirmado que Alzira era estéril, ela dizia a toda a gente que Prudêncio "estava seco" e que não cumpria com as suas obrigações na cama. Que estava sempre "murcho" e que ela precisava de "mais homem" e que só não ia embora porque Prudêncio "não seria nada sem ela" sendo ela a vítima. Sendo ele um homem já de si tímido, ainda mais se fechava quando era gozado no café lá da rua. Continuava a lá ir porque era menos doloroso o gozo dos amigos do que as queixas de Alzira. Mas nunca respondeu a provocações aprendendo a tornar-se quase invisível. Só não o conseguia porque era frequente Alzira entrar no café aos berros, na sua voz esganiçada e rouca, que ele era um inútil e que fosse já para casa.
Ao fim de quase três décadas de cenas semelhantes a estas no café, no mercado, na rua, no médico, e as constantes verborreias caseiras de Alzira, Prudêncio perdeu a paciência... numa noite a juntar às muitas que já passara em branco, levantou-se e dirigiu-se à cozinha. Pegou na maior faca que encontrou e regressou ao quarto. De pé, ao lado de Alzira, elevou a mão com que segurava a faca, olhou para o peito imenso e disforme daquela mulher. Ela roncava ruidosamente enquanto o seu peito pouco ou nada mexia, tal o peso que suportava. Um fio de baba pendia do canto da boca e molhava o ombro. Prudêncio sentiu um sentimento que há anos o atormentava sempre que via a sua mulher a dormir e, finalmente foi capaz de o definir: náusea. O seu coração batia, as pernas adormeceram, o braço termia. Preparava-se para desferir o golpe quando Alzira mudou de posição. Assustou-se, as pernas abandonaram-no e caiu no chão. Levantou-se e voltou para a cozinha. Chamou-se cobarde um milhão de vezes e arrumou a faca na gaveta de origem. Sentou-se e soube que tinha de matar Alzira. Passou o resto da noite a congeminar um plano.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Eu Quero Matar a Minha Mulher

O ressonar dela despertou-o. Abriu a luz e fitou a mulher que dormia ao seu lado. Um fio de baba escorria pela boca fina e inexpressiva, emoldurada em baixo por um queixo quase inexistente e em cima por um buço negro e humedecido pelo suor.
Um arrepio de nojo percorreu-lhe o corpo todo, despertando-o para mais uma noite de insónia. Toda ela exalava um cheiro adocicado que o agoniava para além do que julgava ser possível . Como é que poderia tocar-lhe, beijá-la, possuí-la se a única coisa que sentia por ela era repulsa pura e simples. As pernas grossas quase sempre por depilar, a voz esganiçada que se dirigia a ele com insulto fácil. As mãos de unhas mal tratadas e grosseiras que o agrediam vezes sem conta tinham-no transportado para um estado de quase automatismo. Dizia o mínimo, fazia o máximo só para se esquivar às suas agressões.
Envergonhado, humilhado, rebaixado diariamente não tinha coragem para admitir perante os outros que era uma vítima da sua própria esposa. Seria certamente gozado, escarneceriam dele sem dó nem piedade.
Por isso cada noite que passava acordado ao lado daquele dejecto humano uma terrível certeza tomava conta dele. Uma certeza cada vez mais palpável, mais inevitável. A certeza de que a única forma de se salvar seria matando-a. Só precisava de pensar na melhor maneira de o fazer...

terça-feira, 14 de abril de 2009

Um Estranho caso de Amor: recomeço.

Rodrigo corria pela cidade. Sentia-se livre, leve, feliz. Observava tudo avidamente, como se fosse a primeira vez que corria naquela cidade. Mas não era. Tudo lhe era familiar, o cheiro forte e penetrante que emanava das grelhas do esgoto, o colorido da baixa, a luz brilhante da baixa junto ao rio, o cheiro a maresia, a pastelaria da esquina, as montras, o trânsito. Passou por uma fila de carros que apitavam impacientemente ao camião que descarregava as mercadorias. Não deixou de reparar na bela condutora que o observava e devolveu-lhe o olhar, provocador. "Sempre o mesmo, Rodrigo!" pensou para os seus botões. Sentia o suor a correr-lhe pelas costas, o vento a bater-lhe na face, os músculos das pernas a pedirem-lhe para parar mas ele acelerou. Sentia-se feliz porque ia ver Helena e a sua filha.
Corria já em direcção ao parque da cidade. Além de ser óptimo para correr, tinha um enorme lago com patos e Inês adorava os patos. Lembrou-se que não tinha trazido consigo o pão seco para partir e dar aos peixes e patos. Ela adorava fazer isso e ria-se largamente com a disputa entre os animais. Talvez Helena se tenha lembrado. avistou o verde do parque ao fundo da avenida. As árvores altas e frondosas, as pedras imponentes que o delimitavam, o repuxo gigante do lago e sentiu a brisa a erva que vinha daquela direcção. Mais perto, viu homens e mulheres a correr, famílias sentadas na relva, pares a namorar junto ás árvores, pais e filhos a jogar à bola e a lançar papagaios. Viu as crianças junto ao lago e reconheceu Helena. Mas ela estava só.
Tremeu. Onde estava a menina? Correu com um nó na garganta. Aproximou-se e não a viu. Helena chorava. Parou e olhou em volta. Tantas crianças... onde estava ela? Viu uma menina a correr sozinha pelo parque. Correu atrás dela mas abrandou quando uma mulher lhe pegou ao colo. Andou sem destino enquanto parecia ver a sua filha atrás duma árvore, a brincar com um menino, sozinha na outra margem do lago. Não estava em lado nenhum. Helena chorava. Rodrigo correu por toda a extensão do parque. Queria perguntar às pessoas se a tinham visto mas não sabia como ela estava vestida. De repente, ao fundo do parque, avistou-a. Corria na direcção oposta a ele. Precipitou-se pelo caminho. Correu com todas as suas forças, viu-a virar noutra direcção e perdeu-a de vista. Correu mais ainda e tomou o mesmo caminho. A estrada de pedra subia e Rodrigo sentiu-a a dificultar a sua caminhada. Virou e lá estava ela. Suspirou...
Era um pequeno recanto do parque, bem no cimo da colina. Um relvado bem cuidado rodeava um pequeno lago formado pela água que caía de uma pequena cascata. Ela estava sentada junto ao lago. Brincava com uma folha de um carvalho velho que guardava aquele recanto, e falava sozinha. Rodrigo sentiu-se esmagado por aquela visão e chorou. De felicidade, de encanto, de desespero, de alívio. Aproximou-se e ela sorriu. "Meu amor, minha filha... porque fugiste do pai? Sabes que podes sempre contar comigo, estarei sempre cá para ti, meu amor". Ela olhou-o com um sorriso desarmante no rosto e colocou-lhe as pequenas mãos na face, limpando as lágrimas que caíam.. As suas mãos eram suaves e leves, o seu toque era o Amor. Sentiu que aquelas mãos, aquele toque eram a razão da sua existência.
"Rodrigo, Rodrigo?" ouvia Helena a chamar, ao longe. Olhou e não a viu. Quando se voltou, também a menina tinha desaparecido. "Rodrigo, estás a ouvir-me? Ele mexeu-se!! Rodrigo, Rodrigo....". Abriu os olhos. Lá estava ela!!! Sentada no seu peito uma menina mexia-lhe na face. O cabelo escuro, a pele bem clara, nos olhos castanhos, redondos e grandes bailava a mesma vontade de viver que ele reconhecia todos os dias ao espelho! E o sorriso, ainda só com alguns dentinhos, o sorriso era aberto, franco e pleno de significado como o de Helena. Ele abraçou-a forte e não foi capaz de conter a felicidade que sentia. "Filha, minha filha... já estás tão crescida..."e a menina respondeu tão simplesmente "Papá!" Rodrigo apercebeu-se finalmente onde estava. Viu Helena a sorrir, aliviada. Um médico e um enfermeiro rodearam-no e confirmaram que ele estava bem. "Foste atropelado Rodrigo. Lembras-te?" Ele não se lembrava. Só se lembrava de correr para a ver e contar-lhe que nada tinha acontecido entre ele e Diana. "Helena, tens de saber, eu e Diana..."
"Nunca aconteceu! Eu sei..."
"Como..."
"O António contou-me tudo!! Mas soube-o apenas depois do acidente. Passaram nove meses Rodrigo. Pensámos que te tínhamos perdido... eu e Inês, a tua filha!!" Rodrigo continuava abraçado a Inês e ela adormecera entretanto. Aquele abraço parecia-lhe tão natural como respirar.
"Inês? É linda..."
"Passou aqui a maior parte do seu tempo de vida. Dormiu, comeu, chorou aqui. A primeira palavra que disse foi "papá", numa manhã em que entrávamos para te visitar. Brincou ao teu colo, dormiu no teu peito. Sempre dormiu tranquilamente no teu peito, como agora. Como se soubesse que voltarias para nós a qualquer instante."
"Tinhas razão minha filha..." sussurrou Rodrigo, beijando-a docemente na face. Depois encarou Helena "Também te amo... apesar de tudo. Quero continuar contigo, quero compensar-te por tudo o que te fiz sofrer. Amo-te Helena... mas, nove meses. Eras tão próxima do António e eu podia nunca acordar..."
"O António voltou para Londres, Rodrigo. Ele sabe que nunca vou amar nenhum homem como te amo a ti!!". Abraçaram-se num abraço que ambos julgaram interminável. Estavam juntos finalmente, uma família!
Rodrigo respirou fundo. Finalmente reparou no médico que esperava num canto do quarto. "Diga-me, doutor. Quando é que posso por-me a andar daqui para fora?"
O médico exibiu um sorriso forçado "Interessante escolha de palavras..." disse para si mesmo "Bom Rodrigo, o acidente causou muitos danos. O facto de ter ocorrido mesmo ás portas da urgência foi um factor fundamental para que esteja connosco hoje. Contudo, apesar de estar tudo normal do ponto de vista neurológico, alguns danos foram irreparáveis..."
Rodrigo sentia uma estranha sensação de formigueiro nos pés.
"... tinha fracturas múltiplas da bacia e várias fracturas expostas nas pernas. Alguns ossos foram literalmente pulverizados pelo choque. Lamento Rodrigo... tivemos de lhe amputar ambas as pernas." saiu, deixando o silêncio a governar o quarto.
E cá está!!! Eis o final da saga de Rodrigo!!! Espero que tenham gostado, afinal ficaram todos juntos!
Até à próxima história!!!

domingo, 12 de abril de 2009

Cartas de Amor

Tudo o que cheira a nós é bom. Faz-me voltar ao tempo em que apenas o nosso cheiro povoava tudo aquilo que importava.
Quando toco nas tuas mãos sei exactamente a textura que vou encontrar, quando sigo os teus passos na areia da praia sei que os meus pés vão encaixar dentro da marca dos teus e gosto de me sentir dentro do teu caminho. Saber que rumo a ti, como quem ruma a Norte, como quem quer chegar a um porto seguro.
Não gostas de olhar as estrelas que nos chamam de noite, mas gostas de me olhar no escuro. Não corres para ver um por-do-sol, mas antecipas cada sorriso meu, não descobres uma novidade todos os dias, mas redescobres-me a cada final de tarde que te traz para casa, juntamente com toda a tua alegria.
Não fazíamos grande sentido antigamente, quando ainda não nos tínhamos. Mas agora sei que deixámos de fazer sentido separados.
A folha de papel queimava-lhe as mãos trémulas e chorou por tudo o que tinha perdido. Sabia no entanto que jamais voltaria a perdê-lo. Ao amor que aprisionara bem dentro de si, que continuava a elevá-la bem alto quando a vida teimava em projectá-la para debaixo de tudo.
Abrira aquela caixa de madeira cheia de pequenos envelopes quando ouvira alguém dizer que só os homens escreviam grandes cartas de amor. Cheirou as folhas de papel e conseguiu senti-lo de novo junto a si.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Um Estranho Caso de Amor - Uma Luz na Escuridão

Rodrigo continuou a correr pela cidade. Não importava como chegaria até ela, a única coisa em que pensava era que tinha que chegar o quanto antes. Toda a distância que o separava de Helena deixara de fazer sentido e tinha que a encurtar. Era só isso que importava, diminuir o espaço entre ele e a mulher que amava.
Como é que pudera sequer duvidar de si próprio, como é que pudera supor que seria capaz de trair Helena na sua própria casa? Tinha-se em fraca conta mesmo.
As decisões foram-se formando dentro de si em catadupa, uma após a outra. Largaria o escritório, precisava de mais tempo para eles, para a família que estava prestes a ficar maior. Diria à mulher que a amava todos os dias. Não deixaria que o passar do tempo se tornasse pesado, pelo contrário, renovaria o seu amor diariamente as vezes que fossem precisas.

Helena despediu-se da imagem da filha a preto e branco. Pois em breve iria tê-la nos seus braços, iria ver o rosto que imaginara vezes sem conta ao longo daqueles nove meses. Olhou para o seu médico com um sorriso:
- Então Dr. está tudo bem com ela?
Mas a expressão do médico sempre tão bem disposta, hoje estava grave e preocupada.
Helena desfez o sorriso enquanto olhava a mão experiente do médico às voltas com a pequena sonda.
- A Helena já não volta para casa hoje. O batimento cardíaco dela está muito fraco. Temo que esteja em sofrimento.
- O que é que isso quer dizer?
- Talvez seja melhor ligar ao seu marido. Se quer que ele assista à cesariana…
- Não! Ele… O meu marido não vai assistir. Mas está tudo bem com ela? Por favor Dr. não me esconda nada. O que é que ela tem?
- Eu vou ligar para o bloco, saber se há uma sala disponível para nós. Se quiser avisar alguém…
Helena tentou desfazer o tremendo nó que lhe sufocava a voz e agarrou no seu telemóvel com as mãos trémulas. Olhou a imagem no monitor e tentou dizer à sua filha que esperasse, que em breve se iriam conhecer. Que não desistisse agora.

- Helena? António estranhou aquele telefonema logo após o telefonema de Rodrigo. – O Rodrigo conseguiu falar contigo?
- António alguma coisa não está bem com a minha filha, o meu médico acha melhor fazer uma cesariana o quanto antes.
- O que é que não está bem? – A voz de António tentava parecer o mais tranquila possível.
- Acho que está em sofrimento, não sei. Por favor, eu gostava que estivesses perto de mim. Tens sido o nosso ancoradouro durante estas semanas, eu preciso de ti, mais do que algum dia precisei de alguém.
- Mas o Rodrigo não te ligou mesmo?
- Eu não quero saber do Rodrigo. Vem António, quero-te ao meu lado.


Rodrigo estava perto do hospital, conseguia já sentir os braços de Helena em redor do seu pescoço, imaginar o olhar dela quando ouvisse o que realmente acontecera. Estava tão perdido naquela imagem que não viu a ambulância que se aproximava em marcha de emergência, nem sentiu o embate. Foi tudo demasiado rápido. Primeiro estava em frente ao hospital e pensava em Helena, depois tudo ficou escuro e sem som. Era como se tivesse regressado ao útero materno. Uma sensação quente, de voltar a casa. As vozes de pânico muito ao longe, portas a baterem, buzinas, pânico, muitos gritos. Mas ele estava bem, aliás, ele nunca estivera tão bem em toda a sua vida. Podia finalmente descansar de tudo aquilo. O rosto de Helena, a sua voz, as suas mãos pálidas acariciavam-no agora e ele deixou-se ficar.

A sala de partos era pequena e impessoal. O anestesista pediu-lhe que não se mexesse enquanto lhe aplicava a epidural. António sorria-lhe com um sorriso que iluminava toda a sala. Helena focalizou-se nele. Naquele homem que sofrera por ela, vivera por ela, respirara por ela nos últimos dias. O que fizera para merecer tanta dedicação estava para além da sua compreensão. Mas sabia que com ele não haveria turbulências de maior. Tudo era sereno e despreocupado. Tão diferente da sua vida com Rodrigo.
Ele tentara dizer-lhe qualquer coisa acerca do marido, mas ela nem quisera escutá-lo. Aquele era o momento mais importante da sua vida e não estava disposta a estragá-lo com a imagem de Rodrigo e Diana.
Só António e a sua filha a mexer-se no seu interior é que lhe haviam dado força para continuar e sabia agora que não estava disposta a deixar aquele homem ao seu lado sair para fora da vida delas.

O choro da sua filha quebrou aquele encantamento e quando a viu teve a certeza absoluta que não precisava de mais nada para ser feliz....

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Um Estranho Caso de Amor: revelação

Rodrigo caminhava vagarosamente pelas ruas agitadas da cidade. Era agora um homem mudado. Mais calmo, mais atento aos pormenores, mais simples, menos preocupado com a opinião dos outros. A descoberta trágica que tinha um tumor no cérebro, a perda do controlo do seu próprio corpo, a incapacidade de se expressar tornaram claro o que era mais importante na vida. Contudo, caminhava vergado por um peso invisível, o peso da vergonha. Para ele o mais importante eram Helena e o seu filho. Envergonhava-se profundamente pela dor que causara a Helena e pela dor que ele sabia ir causar ao seu filho, por não estar presente. Por muito que pensasse para ele próprio que todo o ódio que sentiu por Helena enquanto esteve doente, se tinha devido ao tumor, isso não o aliviava. Sabia que não tinha sido esse ódio que o tinha empurrado para os braços de Diana.

Revia os momentos intensos passados com Diana com sofrimento. Reviver aquelas emoções, aquele prazer, aqueles gritos, beijos e arranhões ainda o revoltavam mais. Não sentia nada por Diana, o prazer era carnal, apenas, sexo puro e duro. Tinha traído Helena por nada. Eram apenas colegas de trabalho. Tinham trocado alguns piropos pouco inocentes e Rodrigo não deixara de se imaginar na cama com aquela mulher mas nunca pensara que ela fosse capaz de se entregar daquela maneira. Debaixo daquele aspecto profissional, educado e circunstancial escondia-se uma predadora. Rebobinava as memórias e via Diana nua, pela primeira vez, no seu chuveiro. Sentia a pele dela na sua. Depois no escritório, as pernas esguias e sedosas tentando envolvê-lo como de de um polvo se tratasse, os olhos nos olhos, a língua sibilante. A primeira vez na sua cama, os seios firmes, as coxas quentes, as unhas nas costas, o melhor orgasmo que alguma vez experimentara. No dia em que Helena saiu de casa com António, sexo animal, furioso, intenso. Experimentara com aquela mulher a parte mais primitiva da sua própria sexualidade, o toque dela parecia queimar sempre, parecia que cada toque seu era como uma tatuagem cuja tinta não se vê, mas que a dor, fina, volta á simples lembrança do desenho da tatuagem.

Passaram duas semanas desde que Helena o deixara. Não tentara ligar-lhe, não saberia o que dizer. Sabia que antes de enfrentar Helena teria de enfrentar Diana e vencer o desejo que sentira por ela. Sim, sentira, no passado. Hoje, Diana era significado de sofrimento e, nas suas entranhas sabia que não seria capaz de estar de novo com ela. Sentia-se um cobarde por não ter sido ainda capaz de a confrontar mas pensou que, se sempre fora dela a iniciativa de o procurar nos momentos em que ele se encontrava mais frágil, seria dela o próximo passo. Estranhou o facto de ela ainda não o ter procurado. Com Helena fora do caminho... No escritório, Diana mantinha a mesma pose de sempre: profissional, competente, cordial, educada. Mantinha sempre os homens a uma distância segura, respondendo elegantemente mas sem deixar margem para para dúvidas aos avanços, mais ou menos subtis, dos homens. Cultivara uma imagem de mulher bela, apetecível mas inacessível. Não se lhe conheciam namorados, não falava da sua vida privada, não tinha amigos no escritório. Entrava a horas, saía a horas. Nada de copos após o serviço "para descontrair". Depois do choque inicial, aquela mulher esbelta era respeitada. Mas Rodrigo conhecia a verdadeira Diana.

Rodrigo sentia que Diana o evitava. Saía da sala mal ele entrava, desviava o olhar, sentava-se no lado oposto a ele na sala de reuniões e, acima de tudo, evitava ficar sozinha com ele. Inicialmente, Rodrigo achou que seria apenas estratégia. Uma espécie de jogo do rato e do gato, predador e presa que Diana teria iniciado para depois terminar na cama. O facto de ela assumir o papel da presa, desta vez, intrigou-o. Contudo tinha já desistido de a compreender. Passaram-se dias.

Rodrigo estava farto daquele jogo que o enfadava cada vez mais. Pensou em Helena e tomou uma decisão: falaria com Diana naquele dia. Seguia subrepticiamente e encurralou-a na sala do café. Entrou e fechou a porta, trancando-a. O que tinha para dizer era demasiado importante para ser interrompido. Diana estremeceu quando a porta fechou e encarou Rodrigo.

"Rodrigo... bom... estás bem? Quer dizer... da cirurgia e isso" estava visivelmente pouco à vontade, encostada à bancada do lava-loiça e puxando sistematicamente a saia curta até aos joelhos.

"Temos de falar." Rodrigo estava decidido.

"Sim... pois temos..."

"E porque estás com esse ar assustado? Não me convences."

"Rodrigo... quero que a nossa relação, a partir de agora, seja estritamente profissional." disse, um pouco a medo da reacção de Rodrigo.

"Sim... isso também eu! Mas antes quero esclarecer algumas coisas. Porque raio é que me escolheste a mim?"

"Porque me disseram que eras o melhor aqui da firma."

"Sim, o melhor... e quem te disse isso? Quem poderia saber isso?"

"Bom, Rodrigo, a tua fama precede-te."

"Mas estás louca???"

"Não. Escolhi esta empresa apenas para poder estar contigo."

"És mais cabra do que eu imaginava... premeditas-te tudo, não foi?"

Diana estava visivelmente confusa com o rumo que a conversa estava a tomar e mudou de assunto.

"Acerca do que se passou em tua casa..."

"É exactamente acerca disso que quero falar contigo..."

"Não sei que mensagem errada eu te passei... mas, por favor, nunca mais me tentes beijar. Não serei tão tolerante da próxima vez."

Ah, Ah, Ah, Ah!!! Rodrigo ria descaradamente.

"Beijo?? Estás assim por causa daquele beijo que recusaste??? Impressionante..." Avança para Diana e agarra-a, tentando beijá-la. Diana afasta-se rapidamente e agride-o violentamente com um estalo na face. Rodrigo para subitamente, surpreendido com aquela reacção.

"O quê? Em minha casa, na cama da minha mulher, pode ser. no meu escritório pode ser, no hospital tudo bem, ficas excitada mas a sala do café é território proibido? Por favor..."

Diana estava ofegante, o coração acelerado. Agarrou um prato e estava disposta a parti-lo na cabeça de Rodrigo se ele avançasse novamente.

"Estás a falar de quê???!!" Disse, visivelmente alterada, desalinhada

"Ora Diana, poupa-me!! Acabaste de dizer que eu sou o melhor.."

"ADVOGADO Rodrigo!! O que se passa contigo??"

"COMIGO?!?!? O que se passa comigo?? Quem é que se enfiou no duche comigo, quem é que me desapertou a braguilha no meu escritório? Não foste tu que me proporcionaste a melhor foda da minha vida? Não foste tu que sentiste toda a minha virilidade? E gemeste de prazer sua cabra!! Sempre te excitaste com o proibido e agora essa cena de virgem ofendida?!! Por favor!"

"ESTÁS LOUCO???!! Eu NUNCA fiz nada disso que dizes. NUNCA!! Na tua cama? A única vez que estive em tua casa foi no dia em que fizeste aquela cena lamentável com a tua mulher ali ao pé... a tentar beijar-me... ÉS UM PORCO, OUVISTE? UM PORCO!! Seria incapaz de me deitar com um homem que trata assim a sua própria mulher... ela que tratou tão bem de ti durante estes meses."

Rodrigo estava mudo. Petrificado perante aquela revelação. Perdeu as forças e ajoelhou-se no chão.

"Não pode ser... mentes com quantos dentes tens... eu senti, eu senti-te... a tua pele, as tuas mãos, a tua língua, todo o teu interior... eu tive prazer, orgasmos... "

Diana baixou a sua guarda perante aquele farrapo que tinha aos seus pés.

"Nunca Rodrigo... isso nunca aconteceu. Dizes que estive contigo no dia em que me beijaste? Estive numa reunião com clientes toda a tarde, posso comprová-lo. Contigo no duche, em tua casa?? Como entraria eu em tua casa? No hospital, no dia após teres desmaiado e seres levado para o hospital? Nem estava na cidade... Lamento Rodrigo... não era eu." Saiu, deixando Rodrigo a chorar, rendido ao caos que governava a sua mente.

"Mas como.... como???" A sua mente trabalhava desordenadamente á procura de uma resposta. Até que... Levantou-se e dirigiu-se a um computador. Lembrava-se de uma pesquisa que tinha feito após a cirurgia, acerca do tumor.

"Tumor no sistema límbico" digitou na página do Google. Reconheceu o título do artigo que tinha já consultado. "Anatomia... patologia... diagnóstico... cá está, sinais e sintomas... cefaleias, humor depressivo, alterações da visão, agressividade e.... ALUCINAÇÕES!!!!" Rodrigo estava siderado. Poderia ser? Digitou "alucinações" no motor de busca e obteve "alterações na percepção da realidade que podem ser visuais, auditivas e tácteis. Certas doenças, como alguns tumores do cérebro, podem causar alucinações tão reais que o paciente acredita que vive, de facto, aquela situação. Pode confundir-se com esquizofrenia". Rodrigo tremia. Sentou-se. Riso. Primeiro leve, reprimido, envergonhado e depois mais solto, mais livre até se tornar ruidoso e histérico. Alucinações!!! Ele nunca tinha traído Helena!! Ele amava-a e agora não tinha dúvidas!!

Pegou no telemóvel e marcou um número. Do outro lado atendeu António.

"Rodrigo? Está tudo bem?"

"Ouve António, o tumor que me arrancaste? Podia ter-me causado alucinações?"

"Bem... claro. é típico... mas... tiveste alucinações? Nunca referiste nada!"

"António" Rodrigo estava mais calmo do que nunca "Onde está Helena?"

"Rodrigo... sabes que não posso...."

"Onde, António?" O seu tom de voz saiu calmo mas forte e António percebeu que não devia contrariar Rodrigo.

"Acaba de sair para o Hospital... última consulta antes do parto."

Rodrigo desligou e correu. Esqueceu as dores, as limitações, as recomendações do fisioterapeuta. Correu e, pela primeira vez em muitos dias, o seu coração estava cheio de felicidade, amor e... esperança.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Um Estranho Caso de Amor - Choque

António apercebeu-se que a sua camisa ficara molhada pelas lágrimas de Helena. Era como ter um bocadinho dela junto a si. Passou a mão pela superfície molhada do tecido e olhou Helena e Rodrigo através do vidro. Viu-a acariciar-lhe os cabelos, passar-lhe uma mão pelo rosto, falar-lhe. O olhar do marido era vazio. Olhava-a num misto de culpa e consternação. Quem o olhasse poderia tomá-lo por uma criança perdida, em busca de algum sinal que pudesse orientá-lo.
António sabia que um longo caminho de recuperação esperava por ele. Um caminho nem sempre cheio de sucessos, mas que com o estímulo e dedicação certos, tinha tudo para ser vencido. Pousou uma mão sobre o vidro impessoal que o separava da sala de recobro e ficou ali a ver a imagem daquele casal. A esperança de conseguir um dia ficar com aquela mulher nunca o abandonaria, apesar de tudo, ele era um homem fiel àquilo em que acreditava.
Passaram oito meses. A barriga de Helena assumia já o volume de quem está prestes a conhecer um filho e Rodrigo fizera progressos extraordinários. Coordenava já os seus movimentos, construía frases a um ritmo normal e a sua memória regressava mais um bocadinho todos os dias.
Almoçava com Helena numa esplanada quando as seguintes palavras decidiram brotar da sua boca sem consentimento:
- Eu não merecia nem metade da tua dedicação.
- Como assim não merecias? Na saúde e na doença, diz-te alguma coisa?
- Diz-me que fui um estupor. Que te negligenciei, que deixei que me seduzissem, quando tenho a mulher mais fantástica do mundo ao meu lado.
Helena franze a testa, duas pequenas rugas, que ele conhece de cor, vincam-lhe aquela parte do rosto.
- O António explicou-nos vezes sem conta que a tua agressividade foi provocada pelo tumor. A culpa não foi tua…
- Eu traí-te Helena. Da forma mais miserável possível…
Helena engole em seco, no fundo de si, pensa que ouviu mal.
- Não olhes assim para mim. Todos os dias me lembro mais um bocadinho e à minha lembrança vem-me a Diana na nossa cama, na nossa casa. Eu traí-te mais do que uma vez! Não me perguntes como é que as coisas chegaram a esse ponto, pois não me lembro de ter uma relação para além do escritório com ela. Não sei o que aconteceu, como é que caímos nos braços um do outro, mas a verdade é que tive outra mulher e pior do que isso. Gostei.
Helena não chora. Recusa-se a deixar que a emoção leve a melhor. Sempre disse a Rodrigo que jamais lhe perdoaria uma traição, mas agora que ouvia aquilo, a perspectiva de o perder parecia dolorosa demais.
- Como é que foste capaz?!! Na nossa casa??? Como é que me fizeste isso, eu confiava em ti! Eu fiz tudo por ti…
Rodrigo tenta alcançar a mão dela em vão. Helena já se levanta, fora de si.
- Eu não sei o que é que me deu, ou porque é que as coisas aconteceram! Eu amo-te Helena! O que fizeste por mim…
- Devia ter sido a Diana a cuidar de ti, a limpar-te a baba, a ensinar-te a falar, a caminhar. Porque é que não a chamaste?! Tu és a maior decepção da minha vida! Nunca, ouviste bem, nunca vou conseguir esquecer!
Rodrigo olha Helena com lágrimas nos olhos. Não tem reposta, pois sabe que Helena está coberta de razão.
- O que é que eu posso fazer para me perdoares?
- Todas as coisas baixas que me disseste, que eu não me produzia para ti, que não saíamos! Não foi porra de tumor coisa nenhuma. Foste tu, tu! Comparada com aquela Diana, é claro que sou um pãozinho sem sal.
Rodrigo quer falar, mas tudo o que possa dizer vai soar a desculpa esfarrapada.
- Não saias da minha vida Helena.
- Olha para mim. Já saí!
Helena afasta-se a passos largos e à medida que a distância entre ela e a mesa daquela esplanada se alarga, as contracções que vem sentindo desde manhã tornam-se mais intensas, até a impedirem de andar. Ofegante encosta-se a um velho muro e pega no seu telemóvel. Só há uma pessoa a quem pode pedir ajuda naquele momento. Uma pessoa que os acompanhou durante estes meses como um verdadeiro amigo, apesar de sentir por ela muito mais do que uma amizade.
- António é a Helena. Eu sei que só te ligo nestas alturas, mas achas que podes vir ter comigo? – A voz dela é calma, mas bem lá no fundo desesperada.
- O que é que aconteceu Helena?
- Vou deixar o Rodrigo e acho que vou ter o bebé…

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Um Estranho Caso de Amor: alívio

"INEM, bom dia."
"O meu nome é António Gentil, sou neurocirurgião, estou no nº 2, 5ºdto da Rua da Felicidade. Tenho um homem, cerca de 30 anos, inconsciente, ventila e tem pulso. Apresenta um desvio da comissura labial, pupilas reactivas mas assimétricas. Solicito o envio de uma equipa médica e que contacte o Hospital Central que chegarei com este doente. Que tenham tudo preparado!!"
"Compreendido. Vou iniciar os procedimentos."
António desligou. Olhou para Helena que estava imóvel de olhar vazio junto à porta. Dirigiu novamente a sua atenção para Rodrigo. "Não tem nada bom aspecto" pensou "Apesar de seres um crápula da maior espécie, de teres feito sofrer Helena, não posso deixar-te morrer. Ela iria ficar destroçada". Amaldiçoou a sua sorte. Sabia que, depois disto Helena iria dar-lhe mais uma oportunidade. Ela nunca o iria abandonar se ele precisasse. E ele precisava de largar esses pensamentos e concentrar-se. Ele era médico e aquele o seu doente. A equipa médica chegou rapidamente. Invadiram a casa com os seus aparelhos, ajoelharam-se junto a Rodrigo e colocaram-lhe um soro, os eléctrodos no peito, um tubo pela boca, outro pelo nariz, uma algália. Helena colou-se à parede como se pretendesse fundir-se nela. Observou Rodrigo a passar na maca, desfigurado, cheio de tubos e fios e surpreendeu-se com ela própria. Não chorou. Recompôs-se. Tinha que ser forte.
Rodrigo acordou no hospital. Não reconheceu aquele tecto branco. Ouvia uns sons agudos, rítmicos e fios por todo o corpo. Contudo, sentia-se incompleto, dividido, fracturado. Através dos vidros, viu Helena falando com um médico que, apercebeu-se depois, era António. "Estou tramado com este gajo" pensou, e chamou Helena. Ela voltou-se e entrou no quarto, um sorriso doce, um afago terno na face, a presença serena. "Desculpa Helena... fui um parvo. Amo-te. Estive com outra mulher, espero que me perdoes..." o olhar de Helena não demonstrava revolta, antes confusão com um toque de desespero. "Tem calma Rodrigo, não te percebo, fala mais devagar"
"Como não me percebes? Estou calmo e a falar devagar..." até que ouviu a sua voz...
"Papapapapapapappppppaaa"
"Mas o que é isto.... não consigo falar..."
"Papapapapappapapapappp"
"Tem calma Rodrigo" Helena derramava uma lágrima
"Calma? Calma? Mas..." tentou levantar a mão direita para agarrar Helena mas a mão não lhe obedeceu. Apercebeu-se que não sentia a metade direita do corpo. Pânico!
"Papapapappapapapappapapapapappp"
"Socorro, Helena tens de me ajudar! António!! Ajuda-me... por favor...."
António administrou-lhe um calmante e explicou "Rodrigo, tiveste um AVC, provavelmente por obstrução de uma das veias do cérebro. Neste momento não consegues verbalizar os teus pensamentos. Chama-se a isso disartria. Também tens todo o lado direito do teu corpo paralisado. Não vais conseguir mexer. Dentro de algumas horas vou operar-te. esperemos que estes factores sejam reversíveis. Entretanto tens de manter-te calmo."
"CALMO? CALMO? COMO ESPERAS QUE ME MANTENHA CALMO??!??!?!? Estou preso dentro do meu próprio corpo..."
"Papapapapapapppappappapappp?!?!??!"
Os exames revelaram um tumor no cérebro de Rodrigo. "Um tumor?!!?!" exclamou Helena "Mas... como é possível?"
"Não notaste nada estranho no Rodrigo?"
"Além de se ter tornado num perfeito idiota??!?! Só umas dores de cabeça. Mas sempre atribuímos isso ao excesso de trabalho."
António engoliu em seco antes de falar "Sabes que a agressividade dele pode ter sido um sintoma importante da sua doença?" Helena petrificou. "O tumor está a comprimir todo a parte do cérebro que controla as emoções... a não ser que ele sempre tenha tido essas atitudes." Helena abriu o seu maior sorriso e abraçou António "Claro que não!!! Ele sempre foi um querido!! Quer dizer que, quando lhe tirares o tumor, ele voltará a ser o mesmo de sempre??"
"Bom... tudo indica que sim...."
"Oh António.... obrigado!!"
Entretanto Rodrigo dormia no quarto. Sentiu uma presença no quarto que o beijou no lado direito da face. Não sentiu nada. Diana aproximou-se vagarosamente. "Coitadinho do meu menino... tem dói-dói? Sei que estás... digamos que apenas a metade das tuas capacidades!!!" riu-se da sua própria piada. "Por mais que sempre tenha fantasiado o sexo contigo num quarto de hospital, estás demasiado em baixo. Não me irias dar prazer. Talvez quando fizeres uma entorse num dos teus jogos de futebol?" Rodrigo sabia que ela não o iria compreender e, por isso não falou, mas pensou com toda a sua força "Cabra... nunca mais te quero ver!"
"Não penses que te livras de mim assim, querido" Diana parecia ter-lhe lido os pensamentos.
Diana saiu. Um enfermeiro entrou e disse-lhe que iria já para a cirurgia.
As luzes eternamente ligadas do corredor voavam por cima dele. O bloco operatório era frio. Reconheceu ou olhos de António atrás da máscara verde. Alguém lhe colocou uma máscara de gases e lhe pediu para contar até dez "1... 2... 3... 4... 5.... 6...". Adormeceu.
António saiu do bloco com um sorriso nos lábios "Correu tudo bem!! Não havia estruturas vitais envolvidas!! A face desfigurada dele retomou a sua posição original!! Vai ficar tudo bem!"
Helena chorava mas eram de alegria as lágrimas que lhe rolavam pela face.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Um Estranho Caso de Amor - Uma única certeza

António respeitava as lágrimas de Helena com um silêncio solene, por isso o som do motor do Alfa Romeo desportivo era a única coisa entre eles. A estrada do Guincho, escura e agreste como sempre, lembrava-os que eram simples personagens no jogo do mundo.
- Pensamos que conhecemos alguém por dentro e por fora só para descobrirmos que ninguém conhece ninguém de verdade. As pessoas revelam-se sempre, mesmo aquelas que mais amamos. – A sua mão trémula limpa o rosto molhado, numa tentativa vã para deixar de chorar.
António limita-se a pousar uma mão sobre os cabelos de Helena, num gesto que não perdera mesmo passados tantos anos. Como é que ela se esquecera daquele homem com tanta facilidade? Como é que pudera apagar 3 anos de um relacionamento tão sereno, apenas porque Rodrigo surgira na sua vida?
António sempre fora um estudante brilhante, um namorado dedicado, fiel, meigo. Fora o primeiro homem a quem se entregara e jamais se arrependera disso por um único instante. Por isso ao olhá-lo agora, já com os cabelos salpicados de cinzento, o olhar preso na estrada, aquela mão gentil nos seus cabelos, pensou no rumo que a sua vida teria tomado se tivesse ficado ao lado dele.
- Fala-me de ti António, por favor. Faz-me esquecer da minha própria vida nem que seja só por um minuto.
António sorri.
- A minha vida não é propriamente a coisa mais excitante do mundo, mas se me queres ouvir falar…
- Por favor fala, ajuda-me a esvaziar a cabeça.… - A voz dela era uma súplica.
- A minha vida seguiu um rumo certinho, sem desvios. Acabei o curso com média de 18. Estive uns anos em Londres a exercer, fui convidado a ficar por lá. Mas decidi que fazia mais falta aqui, por isso voltei há cerca de 2 anos. Ontem estava num congresso estúpido quando decidi ir apanhar um bocadinho de ar. Foi aí que te vi sentada no passeio. Até para um homem de ciência como eu é difícil não acreditar no destino quando estas coisas acontecem.
Helena sorri.
- Sempre foste tão céptico em relação a tudo isso...
- Menos em relação a ti. Sempre tive a certeza absoluta que um amor assim só se encontra uma vez na vida.
Helena podia ter ficado incomodada, mas ouvi-lo falar do amor que sentira por ela parecia a coisa mais natural do mundo.
- Eu tenho uma teoria bastante científica acerca do assunto.
- Morro de curiosidade.
- Há alguém destinado para ti no planeta terra. Alguém a quem a força da gravidade, da atracção, do que lhe quiseres chamar, é impelido na tua direcção. Pode demorar anos até que essa pessoa se cruze no teu caminho. Muitas pessoas se perdem umas das outras, pois não estão atentas e essa distracção pode custar-lhes bem caro. Mas eu sempre fui uma pessoa focada. Quando te vi entendi logo que eras a minha companheira de viagem. Tu não me viste como eu te vi. Mas nunca desisti de ti Helena, pois sabia que muitas vezes temos que perder alguém para o encontrar. E que tu tinhas que me perder para me reencontrares. Simples, não é?
Como é que alguém podia amar outra pessoa independentemente de tudo? Não perder a fé, mesmo quando o outro partia noutra direcção? Como é que alguém podia manter-se firme num amor que tinha apenas um lado? Helena não sabia a resposta. A única certeza que tinha era que se existia alguém capaz de um sentimento assim, esse alguém era António.
- Estás consciente de que amo o Rodrigo? Apesar de poder ser o homem mais errado para mim, é a ele que amo?
António sorri, encosta o carro junto à praia e desliga o motor barulhento. Vira-se e encara Helena com um sorriso.
- Eu sei esperar Helena. E por um grande amor espera-se sempre.
Helena abana a cabeça, incrédula.
- Chegas a assustar-me.
António acaricia o rosto dela. O toque da mão dele na sua pele não a deixa indiferente, mas é Rodrigo quem lhe assoma à mente, por isso segura na mão daquele homem ao seu lado, como se o travasse.
- Eu sei que te magoei muito quando terminei tudo entre nós. Não quero voltar a magoar-te António. Não mereces…
António respira fundo e muda o rumo daquilo em que pensa.
- O que é que tencionas fazer Helena? Tens um marido violento, que te insulta, te maltrata numa altura em que mais precisavas dele. Tencionas voltar a correr para os braços de alguém que te deixa tão infeliz?
Helena desvia o olhar, fita aquele mar revolto na esperança de encontrar algum tipo de resposta.
- Agora que te reencontrei não tenciono perder-te. – António nunca dizia o que não sentia, desta vez não era diferente.
- Leva-me para casa António. Eu vou ter uma última conversa com o Rodrigo.
- Levo-te a casa com uma condição. Deixares-me subir contigo. Se o teu marido ainda estiver com aquele olhar enlouquecido, não tenciono deixar-te sozinha com ele.
- Como queiras.
O sol levantava-se no horizonte, aquecendo-os na viagem de volta. Muito pouca coisa foi dita entre eles. António pousou a sua mão na mão dela na maior parte do tempo e Helena deixou-a ficar, sem a menor pressa de chegar a casa.
Os dois entraram no apartamento abafado. Um cheiro a tabaco e a álcool pairava no ar. António abriu caminho pela casa. Helena atrás dele com o coração nas mãos, um sentimento de angústia avassalador, como se alguma coisa terrível estivesse prestes a acontecer. Por isso quando entraram na cozinha e viram Rodrigo estendido no chão, Helena de alguma forma sentia que seria isso mesmo que encontraria quando chegasse a casa. Tudo à sua volta se desfocou, por isso nem viu bem António que caiu de joelhos no chão ao lado de Rodrigo, tomando-lhe o pulso, vendo-lhe os olhos, gritando qualquer coisa para o seu telemóvel. Era como se tivesse acabado de sair do seu próprio corpo e tudo o que se passava agora fosse exterior a ela.