Há quem goste delas curtas, há quem as aprecie mais longas, mas para nós o tamanho não importa, uma história merece sempre ser contada.

terça-feira, 31 de março de 2009

Um Estranho Caso de Amor: lágrimas

Rodrigo avança para de novo beijar Diana, com o olhar turvo pela luxúria que o domina e que lhe dá um ar de loucura prestes a rebentar. Diana afasta-se e coloca-lhe uma mão no peito. Está com um ar absolutamente furioso enquanto diz: "Estás louco?!?" e sai repentinamente batendo a porta, furiosa. Rodrigo está confuso e, ao mesmo tempo furioso. Com Helena por ser tão presente, tão constante. Precisa de espaço para pensar, para se organizar e ela não lho dá. Com Diana por lhe ter mostrado um prazer que nunca tinha sentido com mais ninguém, como uma criança que recebe um brinquedo novo, e por agora lho estar a recusar. Mas estava principalmente furioso com ele próprio. Sempre fora confiante e determinado. Nunca teve dúvidas nas suas escolhas. Porquê este caos agora? Esta desorganização completamente fora de controlo?
"Já fizeste a porcaria do café?" perguntou enquanto entrava lentamente na cozinha. Descalço, tronco nu, o cabelo negro sobre os olhos dando-lhe um aspecto sombrio. Helena chorava encolhida num canto. "Chora, chora... não me serves para nada. Absolutamente nada!" Sentou-se indiferente à mesa e comentou "Que porcaria de café..." Helena sentia-se pequena, vazia e todo o seu interior chorava. Não era medo, era uma profunda tristeza pois amava aquele homem e sabia que ele a amara também, até há bem poucos dias. Chorava porque, estando na sua cozinha com o seu companheiro de anos, sentia-se no desconhecido.
A campainha tocou. Helena correu até à porta e abraçou António. " Olha, olha, quem ele é!!" disse Rodrigo num tom trocista "Sabia que nunca tinhas esquecido esse... esse merdas! Há quanto tempo andas com ele? Sabia que eras uma galdéria... Vai! Pirem-se os dois daqui!!" António retesou os músculos e deu um passo mas Helena pediu para a levar dali. "Estás louco Rodrigo? Nunca gostei de ti porque me roubaste Helena, mas pensava que irias cuidar dela... já vi que me enganei... não vales nada!" Saíram.
Rodrigo estava descontrolado! Arremeteu a chávena do café contra a parede, pontapeou a porta e desfez os lençóis da cama. Sentia-se furioso mas não conseguia determinar com o quê. A visão de Helena apoiada em António revelara-se insuportável. Amava-a ou odiava-a? A linha que separa estes dois sentimentos era agora ténue e ele já não sabia o que sentia por ela. Sentado na cama, observava os prédio que dominavam a cidade e pensava como seria atirar-se do telhado de um daqueles arranha-céus. O que se sentiria na rápida descida. E o contacto com o chão? Seria doloroso ou libertador? Enquanto pensava de olhar perdido no horizonte sentiu o toque quente a que já se habituara. "Voltaste? Pensei que já não querias nada comigo, de tão furiosa que estavas..."
"Cala-te! És parvo se pensas que me vou expor à tua mulher! Tu és apenas o meu brinquedo..." sorria com ar de menina inocente mas o seu olhar traía-a. Estava louca de desejo. "Fiquei muito excitada com toda esta cena tragico-cómica!! Eu, inocente, apanhada numa discussão entre marido e mulher!" Soltou uma gargalhada leve e aguda, como uma menina travessa. Rodrigo perdeu o controlo. Agarrou-a por um braço e encostou o peito dela ao beiral da janela enquanto lhe fazia subir o curto vestido até à barriga e lhe arrancava a lingerie rendada "Á bruta? Gosto muito..." sussurrou Diana com a voz sumida na respiração acelerada e no gemido que soltou quando Rodrigo a penetrou furiosamente. Rodrigo movia-se furiosamente. Parecia mais que queria libertar as suas frustrações que propriamente retirar algum prazer de Diana. Os braços tensos, os olhos firmemente fechados como se estivesse envergonhado do seu comportamento. Terminou rapidamente e caiu exausto na cama. "Uma rapidinha? Esperava mais de ti, meu garanhão! Mas hoje não foi um bom dia para ti... da próxima será melhor."
"NÃO HAVERÁ UMA PRÓXIMA!!" gritou Rodrigo, desolado.
"Também disseste que não haveria uma primeira, lembras-te? E ainda há pouco te rendeste, tu próprio o disseste." saiu com o seu característico porte altivo e sensual. Rodrigo não conseguiu conter tudo o que sentia, tudo o que o consumia e irrompeu num choro descontrolado "O que ando eu a fazer... Helena..."
Helena estava sentada no carro de António, mais calma mas ainda com algumas lágrimas rebeldes que teimavam em rolar pela sua face. "Obrigado por vires António... obrigado."
"Não me agradeças Helena, sabes que gosto muito de ti. Para onde queres que te leve?"
"Não sei... guia e veremos onde a estrada nos leva."

sábado, 28 de março de 2009

Amantes

Ela olhou o corpo nu ao seu lado naquela cama que não era sua, coberta de lençóis de seda, aos quais sempre fora alérgica.
Olhou aquele corpo que aquecia o espaço que ocupava, interrogando-se porque é que continuava a procurá-lo, apesar de saber que o que quer que tinha com aquele homem, que evitava agora olhar com mais atenção, não poderia durar. Mas sempre que o olhava mais atentamente lembrava-se do motivo pelo qual regressava uma e outra vez àquele quarto de hotel, contra todas as expectativas que a sua razão lhe ditava, contra todas as regras morais que a sua consciência insistia em gritar-lhe.
Vestiu-se desajeitadamente e olhou-se ao espelho. O rosto pisado e coberto de pequenas manchas vermelhas não a deixava disfarçar a noite passada. A blusa excessivamente amarrotada, o cabelo despenteado, a pele maculada pelo cheiro daquele corpo que dormia. Nada permitia o esquecimento.
Num gesto furioso arremessou o pesado cinzeiro de vidro contra o espelho e gritou:
-Que cheguem as pragas dos homens que traí, subtraídas às pragas que lancei sobre todos os homens que me traíram!
O homem, sobressaltado, levantou-se e abraçou-a por trás, prendendo-lhe as mãos que tentavam juntar os pedaços de vidro espalhados pelo quarto.
-Tudo se vai resolver, tem calma, tudo se vai resolver. – Aquela voz lembrava-lhe mais um motivo pelo qual não conseguia afastar-se daquele homem que a abraçava como ninguém.
-Mas nada se irá resolver, não entendes? Se colar estes pedaços e voltar a olhar-me ao espelho, terei a minha imagem reconstruída, uma imagem recortada, retalhada, monstruosa. É assim que me vejo repetidamente, dia após dia, noite após noite, até sangrar de horror e de ódio por não conseguir deixar de te procurar.
-Eu nunca irei permitir que deixes de me procurar! Cabe-te a ti despedires-te de mim.
-A ti cabe-te despires-me e deixares-me voltar para casa, para o meu marido, tendo de me despir de novo para ele, apesar de nos meus lábios permanecer a parte molhada da tua boca.
-Cabe-te a ti não voltares a tocar-me. Se ousares tentar... – Ele olhava-a de forma desafiadora, com aquele olhar que lhe arrancava a razão.
-Ficarás sempre com a intensidade do meu corpo na tua superfície, é melhor não me desafiares, porque entre os teus dedos permanecerá para sempre o meu gosto, entre os teus prazeres os meus gritos surgirão como uma faca imprevisível. É aconselhável seres tu a deixar-me. – Ela olhava-o com uma certa loucura no verde dos seus olhos.
-Queres que te diga que me és indiferente, que represente um desdém assanhado e convicto, queres que finja que me repugnas?
-Não acreditaria. – Ela chorava agora dentro do abraço daquele homem, dentro daquele quarto de hotel. – Cabe-me a mim desentranhar-te de dentro do meu corpo que te pertence irremediavelmente.
-Não sei se o permitirei. Aviso-te que não te deixarei seguires a tua consciência.

Na rua gelada pelo inverno ela fez ecoar os seus passos apressados, era necessário chegar a casa antes de uma determinada hora, era necessário mentir mais uma vez, era necessário não quebrar a rotina. Uma mão gelada parecia apertar-lhe a garganta sem piedade. Apenas o som dos seus passos a mantinha alerta.
Uma estranha velha bordava um trapo à porta de uma casa que deveria ser a sua e fitava-a com desprezo. « Ela sabia » , pensou, toda a gente sabia.
O olhar da velha seguiu-a com desdém e ela soube que esse olhar jamais a largaria ao longo da sua vida.
Chegou finalmente ao seu apartamento, iluminado e arrumado, demasiadamente iluminado para a sua consciência escura.
Sentou-se no moderno sofá e esperou escutar a porta do prédio.
Escutou finalmente os passos na escada que conduziam ao andar superior, onde habitava aquele homem que deixara há momentos naquele quarto de hotel. Imaginou os sapatos gastos contra os degraus e estremeceu, definindo mentalmente o espaço do prédio que os unia.
Após uma pausa que lhe pareceu interminável, escutou o som da porta a fechar-se e imaginou o casaco a ser atirado sobre o sofá, tentando tocar com a memória aquela pele fria pelo inverno lá fora.
Deteve-se nas mãos que se libertariam da grossa camisola de lã, conseguindo senti-las na sua própria pele.
Profanou mentalmente a sua mente, espiando sem pudor os pensamentos que sabia ocuparem o espírito daquele homem.
Mentiu novamente a si própria, jurando que jamais se deixaria voltar a tocar por aquelas mãos que se ocupavam agora de outras coisas, mas continuava a senti-las no seu corpo, entregue às imagens lembradas.
O seu braço pendia suavemente daquele sofá, a sua mão desenhava os traços que desejava novamente junto a si.
Fechou os olhos culpados e chorou. Prendeu as mãos teimosas e cerrou os lábios molhados.
«Não voltaria a procurá-lo», decidiu.
A porta da sua própria casa bateu com brusquidão, ao contrário da porta do andar de cima, acordando-a daquele torpor quase chocante que a envolvia.
-Boa tarde querida. – A voz do marido fez com que um sorriso automático e inexpressivo tomasse conta do seu rosto.
-Boa tarde meu amor, senti tanto a tua falta. – Olhou os seus sapatos brilhantes e o seu fato engomado, disfarçando o vómito que chegou sem aviso.
Deixou-se abraçar por aqueles braços excessivamente rígidos, enquanto escutava os passos no andar de cima.
Deixou que ele a despisse, enquanto imaginava as roupas espalhadas no chão da casa sobre o seu tecto.
Deixou que o seu corpo fingisse a entrega desejada por aquele homem, ao qual prometera fidelidade eterna, enquanto fechava os olhos e imaginava outras mãos na sua pele.
No final chorou convulsivamente. O marido julgou que eram lágrimas de prazer e sorriu satisfeito.
Mas ela sabia que eram as lágrimas de alguém que descobrira naquele preciso instante que o homem que tinha no pensamento era o único motivo pelo qual não deixara ainda o marido.
Eram as mãos dele que tornavam suportável o toque do marido, era o cheiro do seu corpo que impedia que vomitasse ao cheirar o perfume do marido, eram as palavras dele que a faziam esquecer todas as frases bruscas daquele homem que arfava agora ao seu lado, era o prazer que ele lhe proporcionava que apagava a frustração que o marido deixava marcada na sua pele.
-Fazes-me sentir tão bem querida. – Aquela voz proveniente daqueles lábios que agora a beijavam fê-la estremecer de nojo.
-Tu também me fazes sentir muito bem. – Ela retribuía-lhe o beijo demasiado seco enquanto os seus olhos abertos fitavam o tecto que era o chão do andar de cima.

Um Estranho Caso de Amor - Às vezes é difícil demais

Helena beija Rodrigo junto aos lábios e tapa-o melhor. O quarto deles está iluminado por uma luz ténue que vem do candeeiro da cómoda e que confere um tom alaranjado àquele compartimento. De alguma forma é uma luz que serena.
- Agora descansa. - A voz dela é terna, como um sussurro.
- Ainda não me sinto bem Helena.
- Tens andado muito ansioso. Vou-te preparar um chá, depois venho para ao pé de ti fazer-te aquelas festas no cabelo. Geralmente são tiro e queda.
- Não quero merda de chá nenhum! Quero ficar sozinho! - A sua voz soa demasiado agressiva até para ele. Mas Helena finge nem perceber. A campainha da porta toca e ela agradece no seu íntimo. Ao sair do quarto tem que munir-se de toda a sua força interior para não chorar. Há alguma coisa de errado com Rodrigo, ela sabe que sim, tem a certeza que ele lhe esconde uma verdade qualquer. Ninguém deixa de amar ninguém da noite para o dia. Ela teria notado que as coisas se degradavam lentamente e isso não aconteceu. Perdida nos seus pensamentos, Helena abre a porta e depara-se com uma atraente loira que num vestido curto, mas com classe, sorri para ela de mão estendida.
- Sou a Diana, colega de escritório do Rodrigo.
Helena estende e mão e tenta lembrar-se do nome, mas nada. Rodrigo nunca lhe falara daquela colega.
- Sei que já é tarde, mas como vamos a tribunal amanhã, combinei com ele rever a lista de testemunhas. O Rodrigo não lhe disse nada?
Helena disfarça o melhor que consegue o facto de se sentir uma completa idiota.
- Ele não se sentiu bem...
- O que é que aconteceu?
- Porque é que não entra?
Ao fechar a porta atrás de si Helena sente um estranho arrepio no pescoço, como um mau pressentimento que chega sem pré-aviso. A mera presença daquela mulher incomoda-a mais do que acha possível.
- Aceita um café, um chá?
- A Diana odeia chá!
De calças de pijama e em tronco nu, Rodrigo fita Diana ali bem no meio da sala.
- Porque é que não nos trazes um café, tenho a certeza que nos ia fazer bem a todos.
- Eu não sei se é boa ideia estares a pé Rodrigo, devias descansar e...
- Porque é que não vais fazer o café Helena? Por favor, será que não tenho um minuto de paz?
Helena bem de dentro de si arranca um sorriso forçado e vai para dentro. Desta vez já não consegue controlar as lágrimas. Já não consegue controlar quase nada. Por isso quando entra na cozinha, pega na cafeteira do café a atira-a com toda a força contra a parede, como se assim evitasse sair de novo porta fora.
Na sala Rodrigo e Diana olham-se. O olhar de Rodrigo é tão intenso que a atravessa sem qualquer espécie de pudor.
- És insaciável mesmo, não te chegou o que tivemos esta tarde?
Diana tem um sorriso nervoso, ajeita o cabelo, como que para ganhar tempo.
- Eu sei que parecemos dois loucos, mas temos que ganhar isto Rodrigo.
Rodrigo puxa-a para si e consciente de que não consegue controlar-se beija-a com uma voracidade tal que tudo se apaga em seu redor.
- Já ganhaste Diana, venceste. Estás satisfeita, não penso noutra coisa, nada mais importa. Ganhaste.
Helena chora na cozinha, odeia sentir-se assim cercada, humilhada, desprezada. O seu telemóvel toca. Ela consegue limpar as lágrimas e entre soluços atende.
- Sim?
- Helena sou eu o António. Fiquei preocupado contigo e consegui o teu número.
- Por favor António vem-me buscar, tira-me daqui, faz qualquer coisa. Eu não aguento mais. Helena soluça, a voz distorcida pelo desespero. - Eu preciso de alguém que.. Eu preciso...
- Calma Helena, dá-me a tua morada eu vou agora para aí...

sexta-feira, 27 de março de 2009

10 m2

"Aguarde aqui.". A sala era pequena e fria. Uma pequena mesa com revistas antigas. Dois cadeirões de veludo verdes. As paredes brancas, despidas, com manchas amareladas de humidades antigas e entranhadas. O lambrim de 1,20 m estava gasto, partido em alguns lugares revelando o cimento despido e bolorento. O rodapé revelava buracos irregulares na madeira corroída pelas térmitas, túneis de acesso ao submundo dos ratos e insectos.
Sentou-se a medo. Sentiu as molas do sofá quando se sentou e ouviu-as ranger, cedendo ao seu peso. Pegou numa revista e viu uma foto do Goucha ainda com bigode e com um aspecto sóbrio. Estava à espera de uma reunião importante com o Director da empresa onde trabalhava. Sentia um tremor constante no corpo que o obrigava a constantemente mudar de posição. Sacou do telemóvel e pesquisou em todos os itens do menu até se cansar. Passaram 5 minutos. Levantou-se e percorreu a sala em todo o seu comprimento. Olhou pela janela. Estava num rés-do-chão que dava para as traseiras do prédio. Contentores do lixo, móveis velhos e partidos, um gato. Ensaiou o discurso que convenceria o Director a promovê-lo. Era essencial que assim fosse. Precisava do dinheiro. A casa, os miúdos, os carros. Passou as mãos pelo beiral do lambrim. Pó seco e antigo entrou-lhe pelo nariz. Detestava pó, estava agora com dor de cabeça. A porta de entrada, fechada, tinha um vidro fusco que apenas lhe permitia ver vultos. Sobressaltava-se quando ouvia passos no enorme corredor vazio lá fora e decepcionava-se quando o vulto passava, apressado pela porta, sem se deter. Passaram 20 minutos.
O relógio parecia zombar da sua impaciência. O grande ponteiro dos segundos, sempre irrequieto no horário de trabalho curto para as tarefas a desempenhar, estava agora apático, sonolento. Arrependeu-se de ter deixado a "Visão" daquela semana no carro. Poderia lá ir buscá-la mas tinha sido avisado da falta de tempo do Sr. Director, da sua intolerância aos atrasos. Não queria arriscar ser chamado durante aqueles minutos de ausência. Ficou. Fixou as formas retorcidas da base da mesinha, em ferro forjado. Desenhou-as com a mente e confirmou em seguida o seu sucesso. As mancha de humidade na parede eram agora manchas de Rorschach. Viu um lobo, um punhal, uma bala, uma caveira. Passaram 2 horas.
Ouvia o seu coração ribombar, os dentes a ranger, a respiração a acelerar, os pêlos a eriçar, os ratos a correr nas paredes, os insectos a roer a madeira. As manchas de humidade cresceram. Um punhal, uma bala, uma caveira. Cocou a cabeça despenteando os cabelos. O discurso ensaiado estava confuso, palavras soltas, vagas, incoerentes. A mente vazia. Passaram 5 horas.
Um vulto trespassou o vidro frio da porta "Acompanhe-me". As pernas torpes, dormentes, bambas. Cambaleou, seguiu e endireitou-se. O coração disparou. Entrou no gabinete. "Não tenho muito tempo, seja breve." Engoliu em seco, a voz secou. "Desembuche homem!", a língua gelou. "Se não tem nada a dizer, homem, saia." Não saiu. "Está parvo? Quer ser despedido?!??!!" Não respondeu.
Um punhal, uma bala, uma caveira.

Um Estranho Caso de Amor: um desconhecido.

Branco. Tudo era branco. Sentia-se a flutuar, ondulante, corpo à deriva, sozinho num universo vazio de som mas pleno de luz. A luz que lhe penetrava pelas pálpebras e feria os olhos que se tentavam esconder. Subitamente, um som. Rítmico, cavo, tamboreante. Vinha de dentro de si e apercebeu-se que era o seu coração. Era o único som nítido que ouvia, o resto chegava-lhe difuso e longínquo, como se estivesse debaixo de água. Abriu os olhos e viu como se observasse o mundo através de um vidro por onde a água escorre profusamente.
"Tensão normal, pulso normal, glicémia normal, traçado cardíaco normal... tudo normal!! Juro que não sei o que se passa com ele. Mas não reage a estímulos, nem sequer dolorosos... juro que nunca vi nada assim..." ouviu uma voz masculina, num tom entre o surpreendido e o confuso. Depois uma voz que conhecia tão bem. "Rodrigo... meu amor. Acorda, precisamos de ti agora. Eu e o nosso bebé...". A voz de Helena pareceu despertar o resto do corpo. Sentia as mãos dela quentes a agarrar na sua, sentiu as suas lágrimas a cair no seu peito mas estas queimavam-lhe como gotas de cera de uma vela a arder. Conseguia ainda sentir o calor de Diana na sua pélvis, a dor fina das suas unhas cravadas nas suas costas, o seu beijo molhado no seu peito. Sentiu finalmente a superfície dura e fria da maca nas suas costas e acordou.
"Helena..." disse com voz débil e sussurrante, enquanto lhe apertava a mão. "O que se está a passar?". "Rodrigo? Estás bem? Ele está a acordar!! Não te preocupes amor, estamos a ir para o hospital...". Ao ouvir a palavra hospital, Rodrigo levantou-se furiosamente. Arrancou os eléctrodos do peito, a manga da tensão, a agulha do braço levando a sangrar profusamente. Estava cego de fúria "HOSPITAL??? HOSPITAL? MAS QUE MERDA É ESTA, ACHAS QUE ESTOU LOUCO?". Helena tremeu de medo, ali encarcerada numa pequena célula de ambulância com um homem tresloucado, sujo de sangue, olhar raiado de raiva, um homem que ela nunca vira antes... o paramédico actuou rapidamente, dando-lhe uma injecção de um sedativo que Rodrigo nem sentiu.
Acordou nas Urgências, sobrelotadas como sempre, no meio do frenesim dos enfermeiros e médicos, num local onde as luzes estão sempre ligadas, num local que nunca dorme. "Onde estou Helena, o que se passou?" perguntou docemente. Helena estremeceu e afastou-se ligeiramente "Não te lembras de nada?"
"Lembro-me de ir tomar um duche e depois... um clarão... e depois... nada. Não me lembro de nada."
Foram atendidos por um médico com uma aparência demasiado nova e assustado para ser médico. Em cinco minutos diagnosticou uma crise ansiosa aguda, provavelmente relacionada com algum factor de stress. "Aconteceu alguma coisa de diferente, alguma novidade, problemas no trabalho?"
"Bem... Dr., eu descobri que estou grávida e contei-lho. Apenas isso."
Está explicado!! Não tem problema, é uma situação perfeitamente normal. Auto-limitada. Pode ir!"
"Mas... e aquele acesso de fúria, na ambulância?"
"Minha senhora.... nestas alturas o nosso sub-consciente manifesta-se e ninguém sabe de que maneiras. As melhoras." Virou costas e desapareceu na multidão de gente, confundindo-se com as outras batas brancas que por ali andavam, sem aparente sentido ou objectivo. Ajudou Rodrigo a levantar-se. Chamou um táxi e dirigiram-se para casa. Rodrigo fixou o seu olhar num ponto algures nos limites da cidade que passava indiferente por eles. Ela apertou-lhe a mão e chamou baixinho por ele. Em resposta obteve... nada.
(Desculpem a demora mas a vida não é só blogonovelas, um gajo também tem que trabalhar!)

Um Estranho Caso de Amor - Uma Certeza

Enquanto punham Rodrigo na ambulância, Helena pensava que não podia perdê-lo. Recordou tudo, desde o momento em que o viu pela primeira vez, até ao dia em que fizeram amor dentro do velho chaço dela ao som de Brian Adams. Recordou aquele momento que antecedeu o primeiro beijo, a sensação de plenitude quando ele disse que a amava e como aquela palavra assumiu uma importância desmesurada. Helena recordou a primeira casa deles de uma divisão, o cão que ele lhe tinha dado, a forma carinhosa como a tinha consolado quando Aramis (o cão) tinha sido atropelado. Ela recordou a voz, o cheiro, o toque daquele homem agora tão diferente. Recordou o calor deixado na cama quando ele se levantava de manhã, o café que ele preparava sempre e que povoava as manhãs deles, recordou o sorriso que Rodrigo tinha apenas na sua direcção, recordou o olhar escuro e fundo, as mãos entrelaçadas nas dela. Há dez anos que se construíam e reconstruíam, se reconquistavam, se davam um ao outro. Dez anos de altos e baixos mas cheios de amor e sentiu-se desmaiar perante a perspectiva de o perder.
Reviu tudo em poucos segundos, mas com uma precisão estonteante.
Quando entrou na ambulância segurou na mão do seu marido ainda inconsciente e sentiu bem dentro de si que seriam sempre um do outro.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Um Estranho Caso de Amor - Desculpas

- Desculpa ter sido um traste Helena, tu não merecias ouvir nada daquilo que te disse.
Helena olha bem dentro dos olhos dele e sente que há ali qualquer coisa diferente, qualquer coisa que não estava lá antes dela ter batido com a porta.
- Há qualquer coisa que não me estás a contar Rodrigo? Lembras-te do que prometemos quando nos casámos? Mentiras nunca. Prefiro uma verdade dura a uma mentira piedosa.
Rodrigo engole em seco. Ao vê-la ali à sua frente com aquele olhar que o despe por dentro vacila.
- Fala Rodrigo eu sinto quando me estás a esconder alguma coisa.
- Porque é que não falamos do nosso filho? Quando é que soubeste, porque é que não me disseste que desconfiavas de alguma coisa?
- Soube hoje de manhã.
- Então porquê o silêncio?
- Disse-te agora, não disse?
Rodrigo passa uma mão sobre o rosto de Helena, ela faz exactamente o mesmo. É o sinal de tréguas deles.
Quer beijar Helena, mas sente o sabor de Diana na boca, sente-a ainda pelo corpo todo. Vai ter que a tirar da pele, por isso levanta-se e dirige-se para a casa de banho.
- Vou tomar um duche e depois conversamos com mais calma.
- Rodrigo? - O tom de voz dela diz quase tudo o que não tem força para dizer.
Rodrigo vira-se e encara-a.
- Ficaste contente com a notícia?
Rodrigo sorri, mas é o sorriso mais triste do mundo, um sorriso que encerra tanta dose de culpa como de felicidade.
- É claro que estou. É o teu sonho, não é?
- Pensei que também querias um filho.
- Se te faz feliz quero sim.
- É só isso?
- Por enquanto é tudo o que consigo dizer. Deixa-me tomar um banho, por favor, eu preciso de um minuto sózinho.
- Desculpa mas não vais tomar porra de banho nenhum. Olha para mim!
Rodrigo continua de costas viradas.
- Olha para mim! Estamos há 7 anos a tentar ter um filho. Fiz 5 longos tratamentos, fui picada, analisada, medida, fiz punções, fecundações, construí expectativas, desiludi-me. E quando desistimos de tentar acontece e tu reages assim?!!!
Rodrigo olha Helena, os olhos avermelhados e húmidos.
- Porque é que não consegues deixar-me em paz Helena? Porque é que tem que ser tudo ao teu nível de emoção?
- Não queres que me emocione? Pela última vez Rodrigo, o que é que tu tens?
Rodrigo entra na casa de banho e fecha a porta atrás de si, encostando-se a ela, como se largasse todo o peso que o consome. Consegue ouvir Helena chorar no quarto, mas dentro de si nada mais parece importar. O cheiro, a voz, o corpo de Diana estão em todo o lado como uma maldição que não o quer largar, que insiste em consumi-lo.
Rodrigo chora, chamando por si, chamando pela sua razão que parece perdida. Acaba por gritar como nunca havia gritado até então.
- Nããããããããooooo!!!!!
Helena irrompe casa de banho adentro e vê Rodrigo caído no chão, inanimado.

terça-feira, 24 de março de 2009

Um Estranho Caso de Amor - Culpa

Rodrigo senta-se na cama. Sente-se confuso porque dois sentimentos antagónicos o consomem. Por um lado, está farto da vida que leva com Helena mas por outro sente que não consegue viver sem ela. Despe-se mas, em vez de ir para o chuveiro deita-se na cama. Sabia que Helena odiava que ele se deitasse na cama suado mas fazia-o para, de alguma forma a castigar. Ela nunca tinha saído assim de casa.
Ouviu o barulho da porta a fechar, devagar, como se não se quisesse anunciar. "Helena... desculpa-me, não sei o que me deu. Ultimamente sinto-me como se fosse outro, como se não conseguisse controlar as minhas emoções." Mas quem entrou no quarto foi Diana. Parecia flutuar, tal a leveza dos seus passos. "Olha, olha... estás completamente nú!" disse num tom entre o trocista e o malicioso "Poupamos tempo." Encaminhou-se para ele enquanto desapertava o fecho lateral do seu vestidinho vermelho. Apesar deste não deixar margem para grandes dúvidas, tal o seu diminuto tamanho, Rodrigo ficou siderado com o corpo daquela mulher. Era ainda melhor do que ela deixava adivinhar. "O que fazes aqui Diana? Como conseguiste entrar? Vai-te, por favor... já te disse que não quero nada contigo!!"
"Ora, ora Rodrigo... nunca nenhum homem me rejeitou e tu não serás, concerteza o primeiro. Além disso posso muito ver muito bem o... tamanho da tua vontade... para que eu me vá embora!!" Riu e montou-se em cima de Rodrigo. Este estava perfeitamente em pânico. Mais uma vez o seu corpo parecia ter vontade própria. Sentia-se como se de um voiyeur se tratasse. Observava aquela erecção que não queria ter, os arrepios de prazer que sentia pelo simples contacto com a pele de Diana, mas isso causava-lhe repúdio. Estaria a sonhar outra vez? Já a tinha recusado antes, o que o impedia agora? A discussão com Helena? Quando Diana o colocou dentro dela compreendeu que era real. Bem real.
As suas mãos percorreram aquele corpo de pele sedosa. Detiveram-se nos seus seios, redondos e firmes, com os mamilos erectos. Ela arqueou o corpo com aquele toque e puxou-o ainda mais para o fundo de seu corpo. Nesta altura Rodrigo capitulou. Colocou a mãos nos seus quadris e ergeu o seu tronco firme e torneado pelo exercício físico, beijou avidamente o pescoço de Diana enquanto determinou o ritmo a que os seus corpos se encaixavam. Diana gemeu, Rodrigo explodiu de prazer. Diana mordia o su próprio lábio enquanto lhe cravava as unhas no fundo das costas. Diana levantou-se, sorria naquele seu característico tom trocista e triunfante "Vês? Não foi assim tão mau, pois não?". Vestiu-se e saiu sem mais palavras, apenas aquele olhar de lúxuria a bailar livre.
Helena despediu-se de António. "Obrigado António, foste um querido e ajudaste-me muito! E, na verdade tens razão. Não posso decidir o que fazer com esta gravidez sem antes falar com Rodrigo. Afinal é o filho dele."
"Continuas a amá-lo Helena?"
"Sim António. Amo-o. E não vou desistir assim da nossa felicidade. Lutarei até que não seja mais possível para nós ficarmos juntos. Ou até que Rodrigo me diga para sair da sua vida..." o seu olhar endureceu.
"Obrigado pela companhia António, e pelos conselhos!" despediu-se enquanto o beijava na face.
"Ora Helena... posso... podemos voltar a encontrar-nos, quer dizer... beber um café ou assim?"
"Claro! Falaremos dos velhos tempos."
Helena entrou no quarto e viu Rodrigo de olhar fixo, vazio. Reparou que estava suado mas não ligou. Estava decidida a não discutir com ele. Saltou para a cama e, com o seu sorriso mais belo e sincero disse: "Amo-te muito Rodrigo! Estou grávida!" Rodrigo não foi capaz de conter as lágrimas. Helena abraçou-o irradiando felicidade. Mas as lágrimas de Rodrigo eram causadas pela culpa do que acabara de fazer. A notícia foi demasiado violenta. Rodrigo chorava de culpa e remorso e pensava "A Helena nunca pode saber..."

Um Estranho Caso de Amor - Decepção

Helena saiu do prédio com o olhar toldado pelas lágrimas. A decepção que crescia bem dentro de si era quase sufocante.
Quem era aquele homem que deixara para trás? Um homem outrora carinhoso, dedicado, sensível que não passava agora de um estranho.
Sabia que a vida deles estagnara um pouco, que já não se consumiam um ao outro como antigamente, que algures entre a vida doméstica e o dia a dia, o romantismo se havia perdido. Mas valia a pena lutar por eles, por aquilo que tinham. Helena não era uma desistente. Por isso não entendia este encolher de ombros de Rodrigo, esta frieza que lhe congelara o coração.
Já não a achava a mulher mais bonita do mundo, já não a ouvia com aquela atenção desmesurada, já não a fazia sentir-se especial. E ainda lhe vinha pedir contas do estado das coisas?
Sem forças para continuar a caminhar sentou-se na berma de um passeio e escondeu o rosto entre os braços. Talvez assim conseguisse pensar, raciocinar no meio daquele turbilhão que sentia. Só queria uma resposta, um qualquer entendimento que a resgatasse, pois afundava-se lentamente.
Sentiu uma mão no seu ombro e uma voz que já havia esquecido:
- Helena, és tu?
Helena limpou as lágrimas com as costas da mão. Sentia-se tremer, com a pressa de sair esquecera-se de vestir um casaco. A respiração dele provocava uma névoa à sua volta, mas Helena viu imediatamente António, reconheceria aquele homem no meio de uma multidão. O seu primeiro namorado.
- António?
António baixou-se ao nível dela e afastou-lhe o cabelo do rosto. Depois tirou o seu próprio casaco e colocou-o nos ombros de Helena.
- O que é que estás a fazer aqui? Moras perto? Posso-te ajudar?
- É tão típico meu. Encontrar o meu primeiro namorado nestas figuras. Em vez de te mostrar que estou bem e maravilhosa, olha para mim. Um farrapo.
António senta-se ao lado dela e ajeita-lhe o casaco, apertando-a contra si.
- Não digas isso, estás na mesma. Exactamente como na faculdade. Não mudaste nada.
Helena sorri, nem tenta evitar as lágrimas que insistem em cair.
- Acabei de descobrir que estou grávida e quando decido contar ao meu marido ele age como um perfeito desconhecido. Sabes quando tens a sensação que alguém te quer deixar e faz de tudo para que sejas tu a deixá-lo?
António anui com um sorriso triste.
- Estás esquecida de como é que as coisas entre nós terminaram? Conheceste o Rodrigo e deixaste-me a remendar os bocadinhos de mim sem sequer olhares para trás.
- E hoje apareces-me aqui, num dos piores dias da minha vida.
- Disseste ao Rodrigo que estavas grávida?
- Não, ele tratou-me como lixo. Eu já nem sei se quero ter este bebé, eu já não sei nada António, nada.
Helena encosta a cabeça a António e deixa que os braços dele a envolvam. Os dois ficam ali, sentados na berma do passeio, como dois velhos amigos que finalmente se reencontraram após um longo período longe um do outro. Helena deixa a voz de António ecoar na noite, enquanto ele lhe diz:
- Vai ficar tudo bem Lena,tudo bem...

domingo, 22 de março de 2009

Um Estranho Caso de Amor - A Falta de Luxúria

- Chegaste tão tarde hoje Rodrigo, o que é que aconteceu? - O Olhar de Helena enternecia-o sempre, mas hoje parecia impacientá-lo.
- Eu tinha-te dito que tinha jogo. ultimamente parece que não ouves uma única palavra do que te digo. - Ao dizer isto, Rodrigo deixa cair o saco desportivo no chão e descalça os ténis, lançando um em cada direcção.
- Porque é que estás assim?
- Assim como? Tu é que me enches de perguntas quando a minha única vontade é enfiar-me no banho e aterrar na cama. Haja pachorra!
- E não é o que tens feito todos os dias? Porque é que hoje havia de ser diferente? - Helena estava claramente magoada com o tom de Rodrigo - Parece que fazes de tudo para chegar tarde a casa e saíres o mais cedo que consegues. O que é que se passa? Se tens alguma coisa para me dizer diz. Mas pára de agir como um idiota. Este não é o Rodrigo com quem me casei.
- Lamento não ser o poço de perfeição que me imaginavas. Se a realidade é demasiado dura para ti tens bom remédio.
Helena tem o olhar húmido por cada palavra que Rodrigo proferiu.
- Tenho bom remédio?
- Sinceramente Helena não tenho paciência para mais uma das tuas cenas. Um gajo chega de rastos do trabalho e ainda tem que levar com isto em casa?
Rodrigo afasta-se para dentro. Helena segue-o pela casa.
- Estás a querer fazer com que te odeie?!
Rodrigo pára no corredor e olha aquela mulher quebrada diante de si.
- Porque é que não te arranjas mais Helena? Porque é que nunca me desafias para sair, jantar fora, dançar, qualquer coisa. Porque é que passamos a vida enfiados em casa?
Helena chora abertamente, mas já não sabe se é de raiva, se de dor.
- Pensei que gostavas de ficar por casa, que estavas cansado.
- Sempre de calças de ganga, és incapaz de te produzires mais um bocadinho para mim.
- Mas que merda é esta Rodrigo? E tu produzes-te para mim? O que é que tens feito ultimamente para me agradar? Ah não espera, deixa ver. Não sei o que é mais sensual, se as tuas cuecas sujas que tenho que pôr a lavar, ou a porra do jantar que tenho que te fazer todas as noites! Já te ocorreu que eu também gostava que me levasses a jantar fora? Que também gostava que me fizesses sentir um bocadinho mais desejável?
A voz de Helena tremia de indignação!
- Parece que estamos os dois mal.
- Então vamos falar, conversar, tentar entender o que é que está a falhar. Mas não penses que me vais fazer sentir culpada!
Rodrigo limita-se a lançar um olhar de cansaço a Helena e a prosseguir o seu caminho em direcção ao quarto. Ao virar as costas à sua mulher sente-se o pior animal do mundo e pergunta-se o que é que o levou a dizer tudo aquilo que acabou de dizer. Mas é como se uma voz tivesse falado por ele, um impulso que não consegue mais largar. Um impulso chamado Diana.
Helena pega nas chaves de casa, calça uns sapatos e atira com a porta da rua. Não sabe para onde é que vai, a única certeza que tem é que precisa de sair dali o mais depressa possível.

Puta de Vida

Ele era ansioso, histérico, hipocondríaco. Cismava que ia morrer a toda a hora porque o coração palpitava, porque sentia uma pontada no estômago, uma dor no flanco, uma dor de cabeça. Enfarte, AVC, trobose, apendicite. Se estava cansado ao final do dia logo se diagnosticava uma fibromialgia. Lia exaustivamente todas as bulas dos medicamentos até as decorar para testar os diversos médicos. Tinha vários porque gostava sempre de uma 2ª opinião. E, como era avisado, pedia também uma 3ª, uma 4ª e uma 5ª até que algum deles concordasse com o seu autodiagnóstico, pesquisado do Google ou na Wikipédia.
Comia tudo, de tudo e bebia. Por vezes mais do que a conta. A culpa consumia-o e temia morrer de um ataque fulminante de colesterol ou de diabetes ou de tensão alta. "O colesterol alto não é letal, ninguém morre de repente porque o colesterol está alto!" disse o médico. "Você está muito ansioso." Não o descansou "Ouvi dizer que se pode morrer de ansiedade..." respondeu e do médico só obteve um abanar de cabeça condescendente e uma receita passada enquanto pensava de si para si "Tu és é psiquiátrico... nunca mais acabam a merda das consultas..."
Tomava os ansiolíticos e os antidepressivos religiosamente, por vezes duplicava a dose porque sentia que o seu corpo estava a contrair uma nova doença a cada minuto. Cancro, flebite, arterosclerose, tuberculose, próstata, gota, anemia, insuficiência renal, disfunção eréctil. No trabalho comia sempre sozinho, numa arrecadação. Por um lado tinha medo de apanhar a tuberculose, dizem que está a voltar em força e que se apanha em locais com muita gente, mas por outro lado nunca ninguém se sentava com ele. Não percebia porquê.
Um rapaz do armazém encontrou o seu corpo numa arrecadação escondida. A face negra, o corpo pálido. Os bombeiros dizem que se engasgou com um bocado de pão integral.

sábado, 21 de março de 2009

Um Estranho Caso de Amor - Luxúria

Helena acordou com o suave odor a café que se espalhava lentamente pela casa e lhe invadia as narinas. Levantou-se energicamente e embrulhou-se no lençol. Encontrou Rodrigo sentado na banca da cozinha, um hábito que ela não gostava mas enfim, sabia que ele só o fazia quando estava com a mente ocupada.
-"Bom dia meu lindo! Sabes como fico contente quando te levantas antes de mim e te encontro já limpinho e cheiroso. E este café... hmmmm, fico acordada só com o seu odor!" disse enquanto caminhava lentamente, deixando cair o lençol e olhando-o maliciosamente. Helena era uma mulher bonita, sem dúvida. Mas a sua beleza era terna e serena. Uma morena de olhos castanhos profundos, não muito alta mas de curvas generosas. Séria no trabalho, competente, defensora da igualdade entre géneros pelo que abominava as suas colegas que faziam uso dos seus atributos de mulher para ascender na hierarquia dominada pelos machos. Mas isso era no trabalho. Na privacidade do lar sabia entregar-se plenamente, era atenta aos pormenores e tentava sempre que a sua relação com Rodrigo fosse sexualmente aliciante. Para ambos.
-"Desculpa Helena... tive um sonho estúpido... ou dois, não sei bem. Estou cansado e tenho de ir para o escritório." Beijou-a nos lábios e saiu.
Enquanto conduzia não conseguia tirar Diana do pensamento. Como é que ela tinha entrado em casa, no duche? Com Helena logo ali. Lembrava-se da situação como de um sonho se tratasse mas ainda sentia o toque firme dos seus seios nas costas e o seu beijo lascivo. "Sempre soube que eras uma cabra. Tens o desejo a bailar-te no olhar" pensou enquanto se esforçava para se concentrar na face doce de Helena, afinal a mulher que ele amava, com quem tinha assumido um compromisso, que lhe dava tudo, na vida e na cama, que o fazia sentir no centro do mundo. Estranhava esta sensação de ter de se esforçar para pensar em Helena... era a primeira vez que o fazia desde que estavam juntos. Estava constantemente a ser interrompido pelo riso trocista e mavioso de Diana enquanto dizia "Vim para salvar o teu casamento. Aceita."
Ao entrar no seu gabinete encontra Diana sentada na sua secretária. Não consegue deixar de sentir um arrepio na espinha cada vez que vê aquela mulher. Alta, pernas compridas e torneadas pelo ginásio diário que culminam num rabo perfeito. A cintura fina é salientada pelos seios firmes e nota que não traz soutien. A face é a dos anjos mas com a aura dos demónios, os olhos verdes penetrantes parecem despi-lo com os olhos. Rodrigo sente as mãos suadas quando diz "O que fazes aqui Diana? Por favor sai!" enquanto prepara a sua mesa de trabalho tentando manter as costas viradas para Diana. "Sabes perfeitamente o que quero. E sei também que me desejas. Porque lutas assim contra mim, ou melhor, contra ti?"
"Já te pedi para saíres..." sente um puxão na gravata e fica frente a frente com Diana. Ela envolve-o com uma das suas pernas, como se de uma serpente se tratasse. Ele não consegue contrariar o seu corpo, todo ele agora bem firme e tenso. Diana coloca a sua mão na braguilha de Rodrigo e escarnece "Tolo! Todo o teu corpo me quer" e baixa-se enquanto desaperta as calças dele. Rodrigo estremece.
"Rodrigo, Rodrigo, RODRIGO!!!" ele estremece e vê o seu velho amigo Ricardo "Que se passa pá??!?! Estás há horas a olhar para esse ecran!! Acorda meu!!! Chegas e nem dizes nada, as secretárias estão a comentar que estás estranho... "
"Viram alguém sair daqui agora mesmo?"
"Não, ninguém viu nada. Estás bem? Estás suado. Tens febre?"
"Nada disso pá!! Como é logo? A bola mantém-se?"
"Claro meu!! Aqueles cromos da contabilidade nem sabem a abada que vão levar!!!"
"Vá, tenho de trabalhar. Encontramo-no no balneário!"
"Porta-te bem pá!!! E já topaste a miúda nova, Diana?? É tão boa!!!!"

Um Estranho Caso de Amor - A Tentação...

Rodrigo deixa que a água quente lhe caia sobre o corpo demasiado tenso e fecha os olhos. Ainda se sente inebriado pelo sonho que o despertou de forma tão brusca, por isso quando o toque daquelas mãos o envolve, não tem pressa de abrir os olhos, deixa-se afagar por aquela pele que conhece tão bem.
- Tive um sonho tão estranho. - A voz dele sai enrouquecida. Como lhe sabe bem aquela rara iniciativa de Helena. Como tinha saudades de a sentir assim contra si.
As mãos prosseguem sem resposta e terminam numa suave massagem pelas suas costas doridas.
Rodrigo vira-se para trás, na certeza de encontrar aqueles lábios cujo sabor sabe de cor. Aproxima o seu rosto do rosto dela e vira-se para a beijar. A boca corresponde, mas não sabe a ela. Rodrigo abre os olhos e quem tem ali, nua dentro da banheira ao seu lado não é Helena, mas uma mulher loira, esguia com um sorriso provocador nos lábios.
- Diana?!!! O que é que estás aqui a fazer? Como é que? Onde?
- Calma Rodrigo, eu sei que tens sonhado comigo. - O sorriso dela é desconcertante.
Rodrigo tenta tapar-se, sai da banheira desajeitadamente, acabando por cobrir-se como pode com a toalha.
- Eu só posso estar a sonhar. Isto não é verdade.
- Sempre me desejaste, do que é que estás à espera? Nos sonhos podemos ser quem quisermos. Não deves fidelidade a ninguém.
Mas Rodrigo sentia-se bem acordado. Sabia que as coisas entre ele e Helena há muito haviam arrefecido, mas ela ainda era a sua mulher.
- Sai daqui. Não sei como é que entraste, mas trata de sair o mais rapidamente possível.
Diana sai da banheira com toda a segurança que uma mulher consciente do seu corpo pode ter.
- Tu só vais ser feliz com a Helena depois de me teres. Será que não vês isso? Eu vou sempre ser a sombra no vosso casamento. Como teria sido, como teríamos sido juntos. Tens que tirar isso do teu sistema. Só assim vais ser feliz. Entrega-te Rodrigo, responde às tuas perguntas, sente-me, eu estou aqui para ti. vim para salvar o teu casamento. Aceita.
Rodrigo sente que está a ser posto à prova por uma qualquer entidade estranha a si, sente-se desfalecer ante a imagem daquela mulher que sempre desejou. Mas ali, adormecida no quarto, está Helena...

Um Estranho Caso de Amor - O início

1. Exposição
Ele corre pelas ruas da cidade. Normalmente estas suas corridas dão-lhe sempre uma sensação de desprendimento, de liberdade, mas desta vez sente-se desprotegido, exposto, envergonhado. Os pés doem-lhe, sente as rugosidades do asfalto e o impacto do chão anormalmente intenso nos calcanhares. Repara que está descalço. Quer parar mas o seu corpo não lhe obedece. Sente o vento em todo o corpo e uma estranha mas familiar sensação de leveza que apenas vive quando deambula sem roupas pelo seu apartamento de homem solteiro e bem sucedido...
"Estou nu, completamente nu!!!" A angustia e uma enorme vergonha tomam conta dele. Leva as mão ao baixo ventre e tapa o orgulho da sua virilidade. Nunca tinha tido vergonha do seu corpo, aliás orgulhava-se dele, mas agora esse corpo estava deformado, diminuido, mirrado. Queria esconder-se num beco qualquer mas continuava a correr, descontrolado. As suas pernas estavam decididas a causar-lhe o máximo de vexame possível e dirigem-no pelas ruas mais movimentadas, através de centros comerciais, por entre as filas de carros parados nas filas de trânsito. Ninguém parece notá-lo mas isso não o alivia. Sente o peso da vergonha de uma forma que nunca sentiu antes. O pânico toma conta dele quando se apercebe do caminho pelo qual as suas pernas o transportam.
Está a aproximar-se do edifício onde trabalha. Entra no enorme hall e, subitamente, para. A respiração ofegante, o corpo suado, as pernas dormentes. As pernas finalmente fizeram-lhe a vontade mas no pior sítio do mundo. Grita um grito mudo que ninguém à sua volta ouve. Estão todos parados a observá-lo e a rir. Ruidosamente uns, subtilmente outros. Sente o escárnio daquelas pessoas a cravar-lhe o corpo como se de murros se tratassem. A sua mente grita, agita-se, luta para voltar a correr para trás, e voltar à indiferença das ruas mas as sua pernas caminham agora lentamente.
Entra no elevador. Estranhos entram também, querem prolongar aquele divertimento inesperado num local onde nada de novo acontece. Ele vê o seu reflexo nas portas metálicas e frias do elevador. Quem é aquele homem? Magro, quase esquelético, cabelo baço e ralo, desdentado, pés e mãos desproporcionalmente grandes para aquele corpo, sem pelos exceptuando uma farta mini-cabeleira rodeando o seu pénis diminuto. A porta abre-se, entra na divisão onde trabalha. Todos os seus colegas festejam a sua vergonha. Há champanhe, confettis, música e... um palhaço acabadinho de chegar. Caminhou pelo longo corredor de secretárias e ouviu gritar o seu nome. Caminhava agora curvado, como se se arrastasse, os braços caídos, os joelhos dobrados. entrou no seu gabinete e sentou-se. Conseguia ver as pessoas a festejar através das paredes transparentes e a chamar por ele. O telefone toca.
Rodrigo acorda suado, os músculos contraídos enquanto procura, de olhos ainda fechados, o despertador que lhe berra aos ouvidos. Senta-se na cama e sente-se estranhamente cansado, as pernas a latejar. Levanta-se e enfia-se no duche.

sexta-feira, 20 de março de 2009

A Vida Reencontrada

1

Andava para a frente apenas para conseguir imaginar que deixava algo para trás, para conseguir imaginar que algum fim existia no final dos passos que dava.
Caminhava apenas porque não sabia estar parado, talvez receando enfrentar-se, talvez evitando assim os espasmos que pareciam consumir o seu corpo quando se encontrava solidamente quieto.
Continuava caminhando pelas ruas como que para se enganar, para baralhar o destino cujo intuito sabia já de antemão.
Na sua mente ecoavam ainda as duas palavras proferidas pelo médico frio, “Doença Terminal”, dissera-lhe calmamente. Informara-o também que tinha a possibilidade de se sujeitar a um tratamento que lhe prolongaria a vida por mais uns meses.
Mas o que era prolongar a vida para além do que estava escrito e programado? O que era retardar o final que o esperava, que o sugava para dentro de uma sombra desconhecida?
E assim passava os dias caminhando para fora de si próprio, evitando-se, largando-se, despindo-se das aspirações terrenas que sempre o haviam guiado até então.
Caminhava, nunca passando as curvas, voltando para trás a cada esquina, a cada cruzamento, pois não desejava saber o que se escondia para além, não desejava ter que optar, pois sentia que de nada lhe valeriam as opções voluntárias, que tudo seria indiferente à sua vontade.
Caminhava como os loucos, horas e horas a fio, sem rumo que não o de não chegar nunca a lugar nenhum.
Não chorara ainda a sua própria morte, não idealizara o ultimo suspiro. Estava certo apenas que ninguém teria à sua cabeceira, que ninguém o choraria, que ninguém morreria um pouco à sua partida, pois era certo que sempre havia negado qualquer necessidade de companhia, que sempre havia rejeitado tudo o que o fizesse sentir obrigado, emaranhado na rotina.
No entanto, desejava ter alguém com quem partilhar aquele momento crucial da sua vida, que era a sua própria morte.
Chegava ao seu moderno apartamento, já quando a noite iniciava a sua função de escurecer o mundo e sentava-se chorando o seu fim antecipado. Tinham-lhe concedido aquela oportunidade de se despedir do que deixaria para trás, mas ele nada tinha a que dizer adeus. Talvez ao entardecer no Miradouro de Santa Catarina, talvez à sua música. Mas nada mais sobraria da sua passagem pela vida.
Telefonou à Rita, sua namorada da ocasião:
-Rita, precisava de conversar contigo.
-Se é para me dizeres aquilo de que já estou à espera...
-Do que é que estás à espera?
-Que inventes uma qualquer desculpa para não tornares a ver-me. Afinal já há duas semanas que não dás sinais de vida!
-Sinais de vida? – Achou irónica a frase. – Sou assim tão previsível?
-Quando te conheci sabia bem o que esperar de ti, nunca me iludi. Aliás, tu nunca permitiste que me iludisse. – A voz daquela mulher morena e terna parecia agora fria e cortante.
-Tenho dois meses de vida. – Seguiu-se um silêncio absurdamente longo, durante o qual ele conseguiu escutar a respiração daquela mulher de feições marcantes do outro lado da linha.
-Espero que não seja qualquer espécie de truque, de uma qualquer desculpa de mau gosto. Ficaria extremamente ofendida! – A voz continuava implacável, nunca a havia escutado assim.
-Sei que não tenho o direito de partilhar contigo este peso, pois, afinal de contas, nunca deixei que partilhasses o que quer que fosse comigo, para além da minha cama... – Outro longo silêncio, que serviu para que ele se apercebesse de que nada conhecia daquela mulher para além do seu corpo perfeito e que nunca lhe parecera tão importante uma reacção emocional em detrimento de um impulso físico. – Estou, Rita, ainda estás aí? – Apenas o vazio de uma chamada interrompida lhe respondeu. – Desligou... « É compreensível, afinal de contas ela sempre soube das minhas verdadeiras intenções para com ela». – Pensou, enquanto limpava do rosto os vestígios da sua angústia.
Percorreu as folhas da sua agenda, riscando os nomes que sabia não interessarem agora. Discou o último número da sua grossa lista e esperou angustiado a voz do outro lado.
-Zé, sou eu. Podes passar cá em casa, preciso de falar contigo...
-Não pode esperar? É que a Teresa está aqui...
-É mesmo muito sério, por favor. – A sua voz mostrava o desgosto que o consumia.
-Pois, mas vai mesmo ter que esperar, não estive dois meses a tentar traze-la cá a casa, para a deixar plantada na sala, enquanto vou conversar com o meu amigo. Acho que tu, melhor do que ninguém, entendes a minha posição delicada...
-Posição delicada? – Pensou na sua vida, agora presa por um ténue e delicado fio. – Sim, deixa estar, não te preocupes.
-Não estava preocupado, quando tiver um tempinho livre telefono-te.
2
A sala parecia-lhe fria e formal. Sentiu, pela primeira vez a necessidade de fotografias para as quais olhar, que retratassem algo que fosse deixar para trás, algo que provasse que tinha realmente vivido.
Percorreu aquele moderno compartimento com o olhar e voltou a chorar. Parecia chorar por todas as vezes que nunca o fizera, por cada palavra, cada gesto vão no que agora parecia importante.
A campainha da porta cortou o seu estado meditativo, surpreendendo-o, fazendo-o estremecer de susto.
Uma mulher alta e morena esperava-o do outro lado da espessa porta.
- Rita? – A sua voz parecia infantil.
Ela limitou-se a entrar para o interior aquecido do apartamento, que tão bem conhecia, envolvendo-o num abraço que continha toda a força invisível do mundo. Ele deixou-se abraçar, entregando-se sem reservas àquela mulher que nunca o abraçara assim, que acorrera ao seu apelo sem hesitações. As hesitações que ele sempre lhe proporcionara com interrogações e avisos constantes.
Permaneceram abraçados por uma imensidão de tempo, tendo sido ela a quebrar o elo, ao contrário do que sempre sucedia.
Pegou na mão dele e encaminhou-o para o sofá, fazendo com que se deitasse, recostando a sua cabeça em cima das suas longas pernas que lhe pareciam apenas um local de repouso de todas as angústias e não os dois membros sensuais que sempre agarrava sem conseguir esperar.
As mãos dela afagavam o cabelo claro dele, aquecendo-o do frio que tomara conta do seu corpo ao longo daquelas semanas demasiado sós.
-Obrigado Rita... – Molhava a superfície da sua saia com as lágrimas que agora eram constantes. - Ela limitou-se a afagar com mais força os seus cabelos. – Foste a única pessoa que veio...
-Tinha que vir.
-Não, não eras obrigada. Sabes bem que nunca fiz por merecer este colo.
-Ainda assim, tinha que o fazer. Não entendes porquê?
-Talvez por puro altruísmo...
-Nada disso, por um motivo bem mais egoísta.
Ele tentou, em silêncio, compreender as suas palavras, mas só a caridade lhe parecia possível para justificar aquela atitude. Sempre haviam colocado claramente os seus sentimentos mútuos no campo do físico, muito embora aquele contacto que sentia agora com as mãos daquela mulher fosse tudo menos físico.
-Dois meses de vida, foi quanto os médicos te deram? – A voz dela parecia vir dos confins da ternura que nunca achara importante.
-Sessenta dias... – Ele chorava novamente, mas, estranhamente não se sentia envergonhado por o fazer pela primeira vez à frente de uma mulher.
-Pois serão os melhores dois meses da tua vida. – Sentiu que já não conseguiria imaginar-se fora do colo dela, que seria até um bom local para fechar para sempre os olhos.
-Porque é que fazes isto? – Ele apertou a fina mão sobre os seus cabelos.
-Não é óbvio Ricardo? – Ele não respondeu. – Não vês que imaginar a vida sem ti me arranca o chão debaixo dos pés? Sempre senti por ti aquilo que teimava achar desnecessário...
-Porque é que nunca me disseste?
-Querias a forma mais rápida de fugires do meu caminho?- Ele não podia contradize-la, sabia que, assim que a palavra proibida era proferida, ele se sentia responsável demais para prosseguir uma relação. Mas sentia também que era a primeira vez que tais palavras faziam sentido.
-Mesmo quando estiver incapacitado de te reconhecer, de reger o meu corpo com a minha vontade?
-Mesmo assim...

3

Decidiram visitar todos os cantos do mundo, sempre adiados para «um dia mais tarde», dia esse que ele sabia não possuir mais.
Percorreram Marrocos num velho Jeep, bebendo chá de Menta por copos de estanho, acampados com grupos de aventureiros do Deserto.
Trocaram palavras únicas debaixo do Sol da Meia Noite, partilharam silêncios igualmente únicos nas costas de elefantes tailandeses, suaram em velhos comboios indianos e juraram guardar para sempre na memória invisível dos Astros aqueles dias de vivência profunda, que só a certeza do fim concede às pessoas.
Parecia-lhe estranhamente perturbador o facto de nunca ter descoberto realmente aquela mulher que viajava agora consigo naquela viagem de despedida, ou de comemoração, da vida. Nunca retirara tanto prazer da mera presença de alguém, do simples calor do seu corpo ao lado dele. Nunca conversara tão longamente sobre tanta coisa, sem receios de se mostrar totalmente.
Nunca dormira ao relento, coberto apenas pela voz repousante de uma mulher deitada ao seu lado, que lhe inventava histórias de vidas passadas.
Apercebeu-se do que desperdiçara ao não deixar nunca que ela se mostrasse por completo e compenetrou-se que, afinal, talvez fosse muito o que teria que deixar atrás de si.
Passaram quarenta e cinco dias naquela vida nómada e única, não parecendo precisar de mais nada para além dos diferentes povos que os recebiam a cada fronteira.
O regresso ao país que o veria morrer parecia árduo demais para aquele casal aparentemente tão feliz e, ao ultrapassarem a fronteira com Espanha, não sentiram qualquer conforto.

4
O apartamento dele parecia agora mais frio do que nunca e demasiado pequeno, apesar da sua enorme extensão. O atendedor de chamadas assinalava com insistência mensagens lhe trariam notícias de tudo o que abandonara: «Daqui fala o Dr. Fernandes, é urgente que entre em contacto comigo». A essa mensagem seguiam-se mais dez mensagens iguais.
-É melhor ires já ao hospital! – A voz dela estava assustada.
-Vem comigo Rita. – Ele apertou-lhe a mão.

O médico parecia uma espécie de verdugo aos olhos dela, que o observava apavorada.
-Houve um lamentável erro com os seus exames... – A voz do médico continuava fria, tal como ele a lembrava.
-O que é que quer dizer com isso?
-Houve uma troca, um engano. O Sr. Sofre apenas de falta de irrigação numa zona do seu cérebro, é isso que lhe causa as severas dores de cabeça, nada mais.
-Quer dizer que quem recebeu o meu exame é que vai morrer?
-Já morreu, infelizmente.
Um silêncio pesado caiu sobre aquele consultório formal.
-Morreu sem ter tido a oportunidade que eu tive... – A sua voz sumiu-se para dentro de si próprio.
A elegante mulher morena ergueu-se da cadeira e saiu, afagando primeiro o ombro daquele homem pasmado.
Estava certa de que, agora que a vida lhe havia sido devolvida, ele desapareceria da sua própria vida.

5

Passaram-se meses até que eles voltassem a encontrar-se. Foi
no Miradouro de Santa Catarina que as suas vozes voltaram a trocar-se. Ele sozinho, ela acompanhada por um jovem elegante e sorridente.
-Tudo bem contigo Ricardo? Este é o Pedro.
-Tentei telefonar-te tantas vezes...
-Mudei de casa.
Ele olhava-a de uma forma mais madura, ela olhava-o com dificuldade. O Pedro foi tomar um compreensivo café, deixando-os sozinhos.
-Porque é que desapareceste?
-Esperei que me procurasses...
-Levei muitos dias a sair do estado de choque
-O teu olhar está diferente.
-O teu também
-É bom saber que está tudo bem contigo. Tenho que ir ter com o Pedro...
Ele ficou a vê-la andar para longe de si, incapaz de reagir, incapaz de raciocinar.

6
O seu apartamento pareceu-lhe de novo demasiado grande, definitivamente mudar-se-ia para uma casa mais pequena.

A campainha da porta tocou, tal como havia tocado há muitos meses atrás. E a mesma mulher do outro lado olhava-o agora com angustia.
-Desculpa ter aparecido assim...
-Entra Rita, há muito que devias ter vindo.
-O que é que queres dizer com isso? Há muito que deveria ter vindo despedir-me? – A sua voz voltara ao tom defensivo.
-Não foi o facto de julgar que estava a morrer que me deu uma nova perspectiva da vida. – Ele olhava-a com firmeza.
-O que é que foi então que te concedeu esse olhar que nunca te vi? Quase não te reconheci hoje no Miradouro...
-Foste tu.
Um silêncio solene conduziu-os para dentro da memória um do outro, enquanto se abraçavam num gesto de confissão mútua daquilo que partilhariam para sempre.
A voz dela ecoou finalmente por toda a extensão daquele espaçoso apartamento, deixando-o sem palavras:
-O Pedro é o meu marido.