Há quem goste delas curtas, há quem as aprecie mais longas, mas para nós o tamanho não importa, uma história merece sempre ser contada.

sexta-feira, 20 de março de 2009

A Vida Reencontrada

1

Andava para a frente apenas para conseguir imaginar que deixava algo para trás, para conseguir imaginar que algum fim existia no final dos passos que dava.
Caminhava apenas porque não sabia estar parado, talvez receando enfrentar-se, talvez evitando assim os espasmos que pareciam consumir o seu corpo quando se encontrava solidamente quieto.
Continuava caminhando pelas ruas como que para se enganar, para baralhar o destino cujo intuito sabia já de antemão.
Na sua mente ecoavam ainda as duas palavras proferidas pelo médico frio, “Doença Terminal”, dissera-lhe calmamente. Informara-o também que tinha a possibilidade de se sujeitar a um tratamento que lhe prolongaria a vida por mais uns meses.
Mas o que era prolongar a vida para além do que estava escrito e programado? O que era retardar o final que o esperava, que o sugava para dentro de uma sombra desconhecida?
E assim passava os dias caminhando para fora de si próprio, evitando-se, largando-se, despindo-se das aspirações terrenas que sempre o haviam guiado até então.
Caminhava, nunca passando as curvas, voltando para trás a cada esquina, a cada cruzamento, pois não desejava saber o que se escondia para além, não desejava ter que optar, pois sentia que de nada lhe valeriam as opções voluntárias, que tudo seria indiferente à sua vontade.
Caminhava como os loucos, horas e horas a fio, sem rumo que não o de não chegar nunca a lugar nenhum.
Não chorara ainda a sua própria morte, não idealizara o ultimo suspiro. Estava certo apenas que ninguém teria à sua cabeceira, que ninguém o choraria, que ninguém morreria um pouco à sua partida, pois era certo que sempre havia negado qualquer necessidade de companhia, que sempre havia rejeitado tudo o que o fizesse sentir obrigado, emaranhado na rotina.
No entanto, desejava ter alguém com quem partilhar aquele momento crucial da sua vida, que era a sua própria morte.
Chegava ao seu moderno apartamento, já quando a noite iniciava a sua função de escurecer o mundo e sentava-se chorando o seu fim antecipado. Tinham-lhe concedido aquela oportunidade de se despedir do que deixaria para trás, mas ele nada tinha a que dizer adeus. Talvez ao entardecer no Miradouro de Santa Catarina, talvez à sua música. Mas nada mais sobraria da sua passagem pela vida.
Telefonou à Rita, sua namorada da ocasião:
-Rita, precisava de conversar contigo.
-Se é para me dizeres aquilo de que já estou à espera...
-Do que é que estás à espera?
-Que inventes uma qualquer desculpa para não tornares a ver-me. Afinal já há duas semanas que não dás sinais de vida!
-Sinais de vida? – Achou irónica a frase. – Sou assim tão previsível?
-Quando te conheci sabia bem o que esperar de ti, nunca me iludi. Aliás, tu nunca permitiste que me iludisse. – A voz daquela mulher morena e terna parecia agora fria e cortante.
-Tenho dois meses de vida. – Seguiu-se um silêncio absurdamente longo, durante o qual ele conseguiu escutar a respiração daquela mulher de feições marcantes do outro lado da linha.
-Espero que não seja qualquer espécie de truque, de uma qualquer desculpa de mau gosto. Ficaria extremamente ofendida! – A voz continuava implacável, nunca a havia escutado assim.
-Sei que não tenho o direito de partilhar contigo este peso, pois, afinal de contas, nunca deixei que partilhasses o que quer que fosse comigo, para além da minha cama... – Outro longo silêncio, que serviu para que ele se apercebesse de que nada conhecia daquela mulher para além do seu corpo perfeito e que nunca lhe parecera tão importante uma reacção emocional em detrimento de um impulso físico. – Estou, Rita, ainda estás aí? – Apenas o vazio de uma chamada interrompida lhe respondeu. – Desligou... « É compreensível, afinal de contas ela sempre soube das minhas verdadeiras intenções para com ela». – Pensou, enquanto limpava do rosto os vestígios da sua angústia.
Percorreu as folhas da sua agenda, riscando os nomes que sabia não interessarem agora. Discou o último número da sua grossa lista e esperou angustiado a voz do outro lado.
-Zé, sou eu. Podes passar cá em casa, preciso de falar contigo...
-Não pode esperar? É que a Teresa está aqui...
-É mesmo muito sério, por favor. – A sua voz mostrava o desgosto que o consumia.
-Pois, mas vai mesmo ter que esperar, não estive dois meses a tentar traze-la cá a casa, para a deixar plantada na sala, enquanto vou conversar com o meu amigo. Acho que tu, melhor do que ninguém, entendes a minha posição delicada...
-Posição delicada? – Pensou na sua vida, agora presa por um ténue e delicado fio. – Sim, deixa estar, não te preocupes.
-Não estava preocupado, quando tiver um tempinho livre telefono-te.
2
A sala parecia-lhe fria e formal. Sentiu, pela primeira vez a necessidade de fotografias para as quais olhar, que retratassem algo que fosse deixar para trás, algo que provasse que tinha realmente vivido.
Percorreu aquele moderno compartimento com o olhar e voltou a chorar. Parecia chorar por todas as vezes que nunca o fizera, por cada palavra, cada gesto vão no que agora parecia importante.
A campainha da porta cortou o seu estado meditativo, surpreendendo-o, fazendo-o estremecer de susto.
Uma mulher alta e morena esperava-o do outro lado da espessa porta.
- Rita? – A sua voz parecia infantil.
Ela limitou-se a entrar para o interior aquecido do apartamento, que tão bem conhecia, envolvendo-o num abraço que continha toda a força invisível do mundo. Ele deixou-se abraçar, entregando-se sem reservas àquela mulher que nunca o abraçara assim, que acorrera ao seu apelo sem hesitações. As hesitações que ele sempre lhe proporcionara com interrogações e avisos constantes.
Permaneceram abraçados por uma imensidão de tempo, tendo sido ela a quebrar o elo, ao contrário do que sempre sucedia.
Pegou na mão dele e encaminhou-o para o sofá, fazendo com que se deitasse, recostando a sua cabeça em cima das suas longas pernas que lhe pareciam apenas um local de repouso de todas as angústias e não os dois membros sensuais que sempre agarrava sem conseguir esperar.
As mãos dela afagavam o cabelo claro dele, aquecendo-o do frio que tomara conta do seu corpo ao longo daquelas semanas demasiado sós.
-Obrigado Rita... – Molhava a superfície da sua saia com as lágrimas que agora eram constantes. - Ela limitou-se a afagar com mais força os seus cabelos. – Foste a única pessoa que veio...
-Tinha que vir.
-Não, não eras obrigada. Sabes bem que nunca fiz por merecer este colo.
-Ainda assim, tinha que o fazer. Não entendes porquê?
-Talvez por puro altruísmo...
-Nada disso, por um motivo bem mais egoísta.
Ele tentou, em silêncio, compreender as suas palavras, mas só a caridade lhe parecia possível para justificar aquela atitude. Sempre haviam colocado claramente os seus sentimentos mútuos no campo do físico, muito embora aquele contacto que sentia agora com as mãos daquela mulher fosse tudo menos físico.
-Dois meses de vida, foi quanto os médicos te deram? – A voz dela parecia vir dos confins da ternura que nunca achara importante.
-Sessenta dias... – Ele chorava novamente, mas, estranhamente não se sentia envergonhado por o fazer pela primeira vez à frente de uma mulher.
-Pois serão os melhores dois meses da tua vida. – Sentiu que já não conseguiria imaginar-se fora do colo dela, que seria até um bom local para fechar para sempre os olhos.
-Porque é que fazes isto? – Ele apertou a fina mão sobre os seus cabelos.
-Não é óbvio Ricardo? – Ele não respondeu. – Não vês que imaginar a vida sem ti me arranca o chão debaixo dos pés? Sempre senti por ti aquilo que teimava achar desnecessário...
-Porque é que nunca me disseste?
-Querias a forma mais rápida de fugires do meu caminho?- Ele não podia contradize-la, sabia que, assim que a palavra proibida era proferida, ele se sentia responsável demais para prosseguir uma relação. Mas sentia também que era a primeira vez que tais palavras faziam sentido.
-Mesmo quando estiver incapacitado de te reconhecer, de reger o meu corpo com a minha vontade?
-Mesmo assim...

3

Decidiram visitar todos os cantos do mundo, sempre adiados para «um dia mais tarde», dia esse que ele sabia não possuir mais.
Percorreram Marrocos num velho Jeep, bebendo chá de Menta por copos de estanho, acampados com grupos de aventureiros do Deserto.
Trocaram palavras únicas debaixo do Sol da Meia Noite, partilharam silêncios igualmente únicos nas costas de elefantes tailandeses, suaram em velhos comboios indianos e juraram guardar para sempre na memória invisível dos Astros aqueles dias de vivência profunda, que só a certeza do fim concede às pessoas.
Parecia-lhe estranhamente perturbador o facto de nunca ter descoberto realmente aquela mulher que viajava agora consigo naquela viagem de despedida, ou de comemoração, da vida. Nunca retirara tanto prazer da mera presença de alguém, do simples calor do seu corpo ao lado dele. Nunca conversara tão longamente sobre tanta coisa, sem receios de se mostrar totalmente.
Nunca dormira ao relento, coberto apenas pela voz repousante de uma mulher deitada ao seu lado, que lhe inventava histórias de vidas passadas.
Apercebeu-se do que desperdiçara ao não deixar nunca que ela se mostrasse por completo e compenetrou-se que, afinal, talvez fosse muito o que teria que deixar atrás de si.
Passaram quarenta e cinco dias naquela vida nómada e única, não parecendo precisar de mais nada para além dos diferentes povos que os recebiam a cada fronteira.
O regresso ao país que o veria morrer parecia árduo demais para aquele casal aparentemente tão feliz e, ao ultrapassarem a fronteira com Espanha, não sentiram qualquer conforto.

4
O apartamento dele parecia agora mais frio do que nunca e demasiado pequeno, apesar da sua enorme extensão. O atendedor de chamadas assinalava com insistência mensagens lhe trariam notícias de tudo o que abandonara: «Daqui fala o Dr. Fernandes, é urgente que entre em contacto comigo». A essa mensagem seguiam-se mais dez mensagens iguais.
-É melhor ires já ao hospital! – A voz dela estava assustada.
-Vem comigo Rita. – Ele apertou-lhe a mão.

O médico parecia uma espécie de verdugo aos olhos dela, que o observava apavorada.
-Houve um lamentável erro com os seus exames... – A voz do médico continuava fria, tal como ele a lembrava.
-O que é que quer dizer com isso?
-Houve uma troca, um engano. O Sr. Sofre apenas de falta de irrigação numa zona do seu cérebro, é isso que lhe causa as severas dores de cabeça, nada mais.
-Quer dizer que quem recebeu o meu exame é que vai morrer?
-Já morreu, infelizmente.
Um silêncio pesado caiu sobre aquele consultório formal.
-Morreu sem ter tido a oportunidade que eu tive... – A sua voz sumiu-se para dentro de si próprio.
A elegante mulher morena ergueu-se da cadeira e saiu, afagando primeiro o ombro daquele homem pasmado.
Estava certa de que, agora que a vida lhe havia sido devolvida, ele desapareceria da sua própria vida.

5

Passaram-se meses até que eles voltassem a encontrar-se. Foi
no Miradouro de Santa Catarina que as suas vozes voltaram a trocar-se. Ele sozinho, ela acompanhada por um jovem elegante e sorridente.
-Tudo bem contigo Ricardo? Este é o Pedro.
-Tentei telefonar-te tantas vezes...
-Mudei de casa.
Ele olhava-a de uma forma mais madura, ela olhava-o com dificuldade. O Pedro foi tomar um compreensivo café, deixando-os sozinhos.
-Porque é que desapareceste?
-Esperei que me procurasses...
-Levei muitos dias a sair do estado de choque
-O teu olhar está diferente.
-O teu também
-É bom saber que está tudo bem contigo. Tenho que ir ter com o Pedro...
Ele ficou a vê-la andar para longe de si, incapaz de reagir, incapaz de raciocinar.

6
O seu apartamento pareceu-lhe de novo demasiado grande, definitivamente mudar-se-ia para uma casa mais pequena.

A campainha da porta tocou, tal como havia tocado há muitos meses atrás. E a mesma mulher do outro lado olhava-o agora com angustia.
-Desculpa ter aparecido assim...
-Entra Rita, há muito que devias ter vindo.
-O que é que queres dizer com isso? Há muito que deveria ter vindo despedir-me? – A sua voz voltara ao tom defensivo.
-Não foi o facto de julgar que estava a morrer que me deu uma nova perspectiva da vida. – Ele olhava-a com firmeza.
-O que é que foi então que te concedeu esse olhar que nunca te vi? Quase não te reconheci hoje no Miradouro...
-Foste tu.
Um silêncio solene conduziu-os para dentro da memória um do outro, enquanto se abraçavam num gesto de confissão mútua daquilo que partilhariam para sempre.
A voz dela ecoou finalmente por toda a extensão daquele espaçoso apartamento, deixando-o sem palavras:
-O Pedro é o meu marido.

10 comentários:

Banita disse...

Porra! Já acabou? Não acredito que esta história acaba assim...
Parabéns pela iniciativa! Atira-te de cabeça! Como o Ricardo fez com a Rita na volta ao mundo em 45 dias.

R disse...

Ana C., gostei muito desta tua ideia de criares um blog para as novelas. E gostei desta, teve um final um pouco inesperado, sobretudo depois da boa notícia que receberam. Mas a vida é assim mesmo,feita de encontros e desencontros. Continua, terás sempre aqui uma leitora assídua. Sabes que ainda não me arranjaram o teu livro? Na 2ª feira já não telefono, vou lá pessoalmente. Beijinhos

Miguel disse...

Malditos médico!! MALDITOS... em vez de observarem os doentes como deve ser andam por aí a ler e a comentar blogonovelas!!!!

Ana C. disse...

banita, prometo que me vou atirar de cornos mesmo AH AH
Não gostaste do final?
Nem tudo pode acabar bem..

Ana C. disse...

Mariinha, eu estou como tu, as histórias não podem sempre acabar bem. Quanto ao resto muito obrigada!

Ana C. disse...

Miguel C, o mesmo se pode dizer para os enfermeiros AH AH AH

Sílvia disse...

Pronto ficamos sempre naquela expectativa de acabar tudo bem mas gostei muito =)

bjo***

Ana C. disse...

Sílvia às vezes um final menos feliz também acontece...
Obrigada!

Carla disse...

O que me prende aqui é a forma descomprometida e sem floreados como o fazem. Escrevendo assim, quase que ao correr das teclas.
Como eu gostava de o saber fazer...

Esta história é um retrato de como tantas vezes se encara a vida. E outras tantas sem volta.

Amanhã, sigo para a blogonovela que hoje o tempo voa...

Gostei muito :) e vou continuar a gostar de vos seguir.

Ana C. disse...

Carla, muito obrigada. Esta história foi escrita de rajada ainda sem o Miguel. As outras já são a quatro mãos e com uma adrenalina diferente.
Volta!