Há quem goste delas curtas, há quem as aprecie mais longas, mas para nós o tamanho não importa, uma história merece sempre ser contada.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia.

Pai nosso que estáis nos Céus.
A força da fé no Senhor me dê forças para as provações que terei ainda de passar mas feliz daquele que sofre por Deus, como ele por nós sofreu o martírio da crucificação. Porque hoje estive no covil do mal. As mãos doem e tremem ao escrever estas letras, como se tivessem sido queimadas pelo fogo do próprio Inferno. Enquanto rezava as orações de mãos dadas com aquela mulher, as mãos ardiam num fogo invisível. Ela não tem a marca do mal nas mãos, confirmei, antes a maldade está dentro dela. Vive dentro dela, alimenta-se dela e através dela se espalha aos corações das minhas ovelhas.
Confesso, meu Deus, que rezava para que me désseis força para suportar a dor daquele fogo que me atravessava através das minhas já frágeis mãos. Rezava por mim e não para combater aquele terrível mal. Sucumbi perante a violência daquela força. As vozes das almas condenadas flagelaram a minha mente, como sempre o fazem quando abandono a Igreja. Malditos sejam os inimigos do senhor. Este mal que nos ataca é enorme. Invadiu já a Casa do Senhor mas o covil fica naquela casa. A puta do Diabo chorou lágrimas de dissimulação mas eu bem vi o seu olhar vazio, as sombras a olharem-me por trás dos olhos dela. As suas mãos eram frias, como as de um falecido após a noite de velório em cima da pedra mortuária. Frias mas ao mesmo tempo queimavam como um ferro em brasa. São estas as contradições e a perfídia de Lúcifer.
O povo apercebe-se já do mal que emana daquela casa. Fazem-se vigílias e procissões em redor dela. Os cânticos dos vossos servos entoam agora pela noite. A luz da casa apaga-se mas, sem luz lá dentro, os homens quebram na sua determinação. Dizem que ela silva, como uma serpente, que leva a noite, que se apagam as estrelas, que sentem um frio no peito como se o coração tivesse parado, que se sentem vazios por dentro e temem. Temem mais ao Diabo que a Deus.
Mas a raíz de todo o Mal está dentro dela. Enquanto fervorosamente rezava por mim, pela minha salvação, consegui ouvir a sua voz dentro de mim. "Temes-me já e ainda nem nasci. Mas nada temas, serás o meu escravo assim que eu nascer. Verás todo o teu rebanho a perecer perante a minha força e, mesmo assim, servir-me-ás!". Estas palavras ressoavam por todos os meus ossos, toda a minha carne, corpo de Deus. E o riso, o riso que gela e nos rouba a vontade, a força nas pernas e oprime o peito. Não estava preparado Senhor para tamanha força. Hoje mesmo apertarei ainda mais o silício que trago na perna para que sangre o Sangue Divino através do qual purificarei as almas mais preversas!
Aquela criança é Lúcifer. O mal personificado puro e frágil. Tem de morrer! Pelo meu punho, pelo punho de Deus! Deus Pai Todo-Poderoso que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós.
(Diário do Vigário, 22 de Novembro de 1951)

3 comentários:

Ana. disse...

E o mistério adensa-se!!

Muito bem escrito, Miguel, mesmo!

;)

Nuvem disse...

Muito bom Miguel
E nota-se que tiveste uma educação católica/religiosa - muito à vontade nos temas ligados á igreja, exorcismos, auto-flagelação...
ou isso ou muitos filmes ;)
Adorei!

Ana C. disse...

Chiça o bom do vigário, a única luz para a Joana, o salvador, quer-lhe matar o filho...