Há quem goste delas curtas, há quem as aprecie mais longas, mas para nós o tamanho não importa, uma história merece sempre ser contada.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia.

(Correspondência nunca expedida.)
Penhas da Saudade, 21 de Novembro de 1951
Minha querida e Santa Mãezinha,
Espero que estas breves letras a encontrem de boa saúde, a mesma com que a deixei quando parti nesta viagem que agora me parece tresloucada. Quero que saiba o que se está a passar porque não estou certo que algum dia vá regressar o mesmo Júlio que viu partir. Cheguei ontem às Penhas da Saúde a não são bons os augúrio que vêm de S. Vicente. O velho comboio que fazia a ligação até ao apeadeiro de S. Vicente já não sai da barracão onde se resguarda e os homens das Penhas não vão até S. Vicente. Dizem que o mau-olhado paira sobre as casas e os campos da aldeia. Alguns dos jovens com o sangue mais quente aventuraram-se até ao campos dos homens da aldeia mas não foram capazes de lá entrar. Dizem que o nevoeiro é cerrado, que não se vê vivalma. Os poucos que se atreveram a entrar nos domínios do nevoeiro perderam-se e voltaram mudos para as Penhas. Ninguém fala de S. Vicente, é como se a aldeia tivesse deixado de existir. Ninguém está disposto a ajudar-me a atravessar os montes até chegar ao meu destino.
Na tasca das Penhas conta-se a história de um homem louco e bêbado que passou por aqui, vindo de S. Vicente. Um homem que contou histórias de morte e lutas. Um homem que falava no Diabo como se o tivesse visto com os seus próprios olhos. "Um maluco!" disseram-me, mas o certo é que este homem foi corrido das Penhas sem que ninguém, ninguém lhe tenha dado uma côdea de pão. Tentei identificar o homem, pois loucos é coisa que nunca houve em S. Vicente mas nada mais consegui que louco, desdentado, sujo, ladrão de chouriços e do fumeiro que entrava à socapa nas casas abertas. Há quem jure que esse homem trazia as mãos manchadas de sangue, que estava possuído. Também me contaram de como o levaram ao padre das Penhas, para que o benzesse, e de como ele silvou como uma serpente e cuspiu para o padre. Deram-lhe uma tareia e abandonaram-no no monte.
Mas, minha querida mãe, a razão porque lhe escrevo é outra. Desde que cheguei aqui que a dúvida me assalta. Serei covarde talvez mas, que faço eu? Que loucura é esta que me preparo para fazer? Deixar Lisboa, a minha casa, o meu trabalho? Atrás de um filho que eu nem sequer sei se existe? Atrás de um filho que pode até nem ser meu? Afinal de contas, há quanto tempo saí eu de S. Vicente? Tanto quanto julgo saber, Joana esteve sempre só durante esse tempo. E se procurou outro homem para se aquecer nas noites frias do monte? Eu bem senti o calor daquela mulher, minha mãe. Joana não é mulher para ficar sem homem durante muito tempo. Pouco tempo depois de nos namorarmos já estava na cama dela, ela por cima de mim, meneando-se, pedindo-me que lhe lambesse as tetas e lambendo-me o peito. Perdoe-me a franqueza minha mãe, mas uma mulher honrada não tem estes comportamentos. Pensei que estava apaixonado mas agora já não sei... Mas, acima de todas estas dúvidas, está um sentimento. Uma espécie de vazio no estômago, um arrepio na espinha que me atormenta desde que pus pé nas Penhas. Um sentimento que este filho, o meu filho, será também a minha desgraça.
Que Deus a tenha em Eterno Descanso minha mãe. Amanhã parto em direcção aos montes das Penhas. Que estas palavras, estas dúvidas que me ensombram a alma a encontrem no seu lugar no Céu. Que a sua sabedoria me guie na hora em que tenha que decidir.
Para sempre saudoso, o seu filho
Júlio.



3 comentários:

Nuvem disse...

e lá vai ele ao encontro do anti-cristo :)
adoro o suspense desta história :)
bjs

Ana. disse...

Estou a torcer pelo Júlio!
O nosso herói!

;)

Ana C. disse...

Muito bem! O Júlio que escreve à mãe que está no céu, deixou-me a torcer por ele...