Há quem goste delas curtas, há quem as aprecie mais longas, mas para nós o tamanho não importa, uma história merece sempre ser contada.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia 22

S. Vicente da Lua, 22 de Novembro de 1951
Página número 29 do Diário Pessoal de Joana Espinho

Querido Diário
Hoje chorei muito. Chorei como não chorava desde que me lembro. O vigário apareceu aqui ontem à noite e cedi ao seu abraço misericordioso. É o único que não me vira a cara na aldeia, que não me julga, quando é certo que cometi mais do que um pecado capital.
Todo o ambiente estranho que nos envolveu na capela se dissipou aqui em casa. Orámos com muito fervor, lemos passagens da Bíblia que pareciam escritas para mim, conversámos sobre o sentido das coisas e o Vigário pareceu mais sereno do que ontem de manhã. Pediu-me para ver as palmas das mãos, mas nada encontrou. Não lhe falei da estranha marca sobre o meu ventre que aparece e desaparece ao sabor do dia e da noite.
Deixou-me Água Benta para que me benzesse todas as manhãs e assim o vou fazer, bem como passá-la sobre a marca rosada no bucho, pois sei que nesta altura apenas Ele me pode valer.
Hoje os meus alunos pareceram menos cruéis e, apesar de no caminho de regresso a casa, alguns deles me terem seguido e jogado pedras, foram menos os que participaram no “linchamento”.
Estou convencida de que ouvem em casa aquilo que me gritam pelo caminho e certa de que quando me chamam puta nem sabem o que essa palavra quer dizer.
Segurei o meu rosário com todas as forças e caminhei de cabeça erguida, o que pareceu deixá-los um pouco atordoados, habituados como estão a ver-me gritar e perder as estribeiras.
Pensei muito no Júlio e em como seria bom tê-lo aqui perto de mim, mas não posso, não devo ceder à tentação. Para o bem e para o mal já tomei a minha decisão, vou entregar esta criança quando ela vir a luz do dia. Certa de que será mais feliz longe daqui, deste negrume que nos afunda a todos.
Ainda não falei com o Vigário sobre esta minha decisão. Talvez ele me possa ajudar se for um menino, dá-lo para os padres criarem no Mosteiro das Levadas. Se for menina eu mesma a entregarei num convento e quem sabe não pedirei para ficar também eu em voto de clausura.
Enquanto te escrevo escuto os ruídos lá fora e sei que vou passar mais uma noite em claro, possessa de horror. As cantilenas e preces na língua que desconheço parecem munidas de mais vozes a cada noite que passa. Quero encher-me de coragem para espreitar lá para fora, mas ainda não consigo. Chego a temer pela minha vida. Sinto que tudo piora todos os dias. Tudo menos a minha fé que foi resgatada dos confins de mim mesma pelo meu santo Vigário.
Vou ficar por aqui, pois as velas pouca serventia me dão. Esmorecem e apagam-se sempre à mesma hora. À hora dos cânticos. Sei que eles se aproximam, pois as velas já pouca chama queimam. Amanhã volto a ti querido Diário, até lá rezo para passar desta noite.

3 comentários:

Nuvem disse...

como sempre Ana C..... mutio bom!!!
beijinhos

Miguel disse...

Estava a ler e imagens formavam-se na minha mente, de uma mulher assustada mas, ainda assim corajosa!! Num ambiente muuuito hostil...
Muito bom!!

Ana. disse...

Adoro esta tua escrita! Está spotless!

Senti o aperto no peito que a Joana sente, ouvi os murmúrios e vi a chama da vela a esmorecer.

Muito, mesmo muito bom!
;)