Há quem goste delas curtas, há quem as aprecie mais longas, mas para nós o tamanho não importa, uma história merece sempre ser contada.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O Inverno e a Aldeia 20

Correspondência Pessoal
S. Vicente da Lua 21 de Novembro 1951

Meu caro, mais uma vez lhe escrevo na qualidade de amigo e penso que não será preciso pedir-lhe que guarde as minhas missivas como a um segredo de confissão.
Hoje procurou-me uma jovem cheia de dor, recentemente chegada à aldeia, sem família por perto e com um fardo demasiado grande para carregar apenas com as suas mãos. Não deixou de me comover a sua busca de conforto precisamente aqui, na Casa do Senhor. Pois numa altura em que todos os fiéis parecem correr na direcção oposta à minha, esta jovem buscou-me, procurando respostas, compreensão.
Carrega no ventre um filho cujo pai não quis nomear e achei por bem não insistir em querer chamá-lo à razão, pois senti-a irredutível nesse ponto. Como se quisesse proteger o pai da criança do mesmo infortúnio que parece tê-la atingido.
Mas o que me levou a escrever-lhe não foi a história desta jovem e a sua criança, foi sim a certeza mais do que absoluta que estive perante a presença de uma força cheia do mais negro que há.
No frio da capela (já lhe disse que o Fernando Lenhador deixou de me fornecer de lenha) enquanto conversávamos de mãos dadas, senti que as suas mãos ardiam. Não a quentura usual da pele, mas mais. Um ferver, uma labareda, um calor quase insuportável que me obrigou a soltar-me sufocando um grito de dor. Ao olhar as palmas daquelas mãos brancas de leite duas enormes chagas rosadas e salpicadas de negro cobriam toda a sua superfície.
Ao perguntar-lhe se as tinha há muito ela fingiu-se desentendida, que não as via, que nada sentia. Mas como? Perguntei, se elas estão aqui, se queimam?
O seu olhar meio tolo fez com que acreditasse que de facto não as via. Que só aos meus olhos surgiam aquelas hediondas chagas. Na mão esquerda uma cruz invertida, na mão direita três números 6 seguidos formando o número da besta.
Ao pedir-lhe que mergulhasse as mãos em água benta, assentiu pacificamente e quando emergiram do líquido que purifica tudo desaparecera. Tudo menos o negrume que se apoderara do seu olhar.
Foi como se tudo tivesse passado da pele para os recantos escondidos da sua alma. Aquele olhar que me fitava num desafio, chamando-me para dentro de si, deixou-me muito abalado e de nada lhe servi. Nenhuma ajuda lhe prestei.
Sinto-me o pior dos descrentes. Se esta jovem tem alguma espécie de demónio dentro de si, cabia-me a mim apaziguá-la, mas emudeci, aterrorizado. E na superfície líquida do seu olhar o lado branco ficou negro como breu e a sua voz soou grossa como a noite catapultando-me para a mais vil das cobardias que me levou a expulsá-la da casa do Senhor.
Esta noite mesmo terei que me redimir. Procurarei a jovem Joana e juntos descobriremos uma solução.
De qualquer forma gostaria de dar inicio aos procedimentos para poder exorcizar esta alma. Junto seguirá um pedido de autorização que espero que reencaminhe a quem de direito. Mas desde já lhe desabafo que com, ou sem autorização superior, tenciono fazer tudo o que estiver ao meu alcance para libertar esta jovem e a criança que carrega, do domínio do mal.
Seu servo e amigo
Alberto

4 comentários:

Nuvem disse...

bom Aba, muito bom!!!
parabéns
beijinhos

Ana C. disse...

Querida Nuvem se houvesse clube de fãs do Blogonovelas tu estarias sempre em primeiro lugar :)

Miguel disse...

OH YEAH!!! O regresso em força de Ana C.!!!
Muito bons estes dois textos, muito bons e com muitas coisinhas no ar...

Sim! A Nuvem é a nossa fã mais dedicada... obrigado a ela!

Ana. disse...

Isto continua para lá de bom!

A história está cada vez mais intrincada e vocês estão a escrever como nunca.

Palminhas!!

;)