(documento nº 41, caixa 17 - tipo: correspondência pessoal. Status: a destruir)
Aldeia de São Vicente da Lua, 14 de Outubro de 195...
Querida Maria da Conceição, que Deus te guarde sempre, minha sobrinha.
Sei que é assim que se costuma acabar as cartas, mas prefiro escrever o mais importante já, para o caso de algo me impedir de terminar esta missiva. É que algo tão simples e pequeno, como o tempo que levo a mandar-te as notícias desta aldeia que deixaste, deixou de ser certo. Por isso, desta vez não te escrevo a contar das coscuvilhices da vizinhança e da algazarra dos mais pequenos, ou do padre estranho que nos mandaram este ano, ou da escola que ainda não conseguiu encontrar uma professora à tua altura.
Não há tempo, minha doce Conceição, sei-o com a certeza de todos os meus cabelos brancos.
Falo-te sim, do Inverno que trouxe geadas demasiado cedo este ano – como se também ele temesse pelo tempo que lhe resta - ou sobre as petúnias da minha querida irmã e tua mãe, que deixei morrer ainda não sei bem como, quebrando uma de duas promessas: a de cuidar de ti e delas, suas filhas amadas. Digo-te ainda que suspenderam o terço das segundas à noite e os bordados das quintas no salão paroquial. Estes dias, ficamos todos em casa ao cair da noite, desfiando e bordando os nossos próprios pensamentos.
Alguma coisa está a passar-se nesta tua terra, Conceição. Viúvas de luto aliviado voltaram a cobrir-se de negro, as crianças não saem em debandada no fim das aulas. Deixaram de brincar no pátio da igreja também. Se eu pensar bem, há muito tempo que não oiço o Zezinho da Eulália, ou o Inácio, ou o pequeno Pedro do padeiro.
As crianças têm estado em silêncio.
Mas não quero encher-te de ralações, pois foste para Lisboa em busca do teu sonho, ser actriz, e não para te preocupares com esta gente que te virou as costas. Toda a aldeia falou de ti, mas fizeste ouvidos moucos, e ainda bem. Quem nasce com a tua capacidade para entender a alma humana está destinado a voos mais altos, e por isso ajudei-te a ir. Tu realizaste o meu sonho, que era aprender a ler e a escrever, em troca da tua liberdade. Nada mais justo. Deste-me a chave das palavras, eu dei-te as chaves da tua vida.
Nunca te tinha dito isto, pois não? Acho que não. Esta carta já parece uma despedida de uma velha moribunda. Deves pensar que tolinha é a tua tia... mas, se pensares bem, o que sabemos nós da hora da nossa partida? Nada. Ou quase nada.
Só podemos senti-la.
Como um Inverno que chega demasiado cedo.
Despeço-me assim, minha querida Conceição, na esperança de te mandar notícias mais animadoras da próxima vez.
Com todo o amor desta tia que te quer como mãe,
Maria Dulce
PS – tentei dar a fotografia ao Joaquim, mas não o encontrei ainda. Há dias que ninguém o vê.
Rabiscado em rodapé: fotografia ??? MD - desaparecida em 1/11/195..., Joaquim ??? sobrenome???
Há quem goste delas curtas, há quem as aprecie mais longas, mas para nós o tamanho não importa, uma história merece sempre ser contada.
domingo, 11 de outubro de 2009
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6 comentários:
Gostei :)
As notas e anotações no topo e no fundo da carta dão pano para mangas.
Parabéns pela excelente iniciativa Melissinha :)
Ui, ui... a menina Mel está com alguma na manga. O que virá aí? Uma guerra, uma doença, um assassino, um ser malévolo??
Ainda bem que a próxima a escrever á a Ana!!
Só o conteúdo das caixas dirá.
Cartas, bilhetes de comboio, fotografias antigas, Bíblias, missais...
Gostei, Mel!
Está com um tom fenomenal, misterioso q.b.!
;)
Mas isto está muito bom. Adorei este tom de missiva. ADOREI!!!!
thank you, dears!
Acho que dá pano para mangas, sim.
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