Leonor deixou-o entrar na casa de banho e assim que o ouviu ligar a água do duche correu para o quarto. Vestiu o seu suave roupão de seda e abriu a gaveta do armário. Tinha que ser rápida. Sabia onde ele guardava a chave da secretária. A chave que ele nunca largava, que levava sempre consigo.
Sentiu a superfície gelada da chave na sua mão enquanto corria até ao escritório. O seu coração acelerado, todos os seus instintos alerta. Assim que deixasse de ouvir a água do duche tinha que devolver a chave ao seu devido lugar.
Ela tinha que abrir a gaveta mistério. Alguma coisa lhe dizia que era ali que João escondia o que quer que andasse a esconder.
O seu coração feminino nunca se enganava e ela tinha a certeza que o marido a traía. Nunca mais lhe tocara, nunca mais a olhara como um homem deve olhar uma mulher. Andava brusco, impaciente, irascível. Isso só podia querer dizer uma coisa...
A mão trémula conseguiu encaixar a chave na pequena fechadura e ao abri-la, nem ela própria estava preparada para o que se revelava do seu interior.
Pegou na primeira fotografia que repousava sobre o extenso molho. Uma mulher de traços nobres, sofisticada, sorria para a câmara, como se a namorasse. Ela abafou um pequeno grito quando leu a mensagem escrita nas costas da fotografia.
" Tua Até à Eternidade"
Leonor colocou a fotografia sobre as outras e virou a sua atenção para um pequeno envelope escrito com uma caligrafia muito feminina.
Ao Cuidado de Sérgio Andrade.
- Sérgio Andrade? - Pensou e repensou aquele nome, tentando encontrar algum sinal na sua memória que lhe dissesse que o conhecia. Mas uma voz interrompeu o seu pensamento:
- O que é que pensas que estás a fazer Leonor?
Ela deixou cair o envelope e olhou o marido num misto de culpa e incredulidade.
Há quem goste delas curtas, há quem as aprecie mais longas, mas para nós o tamanho não importa, uma história merece sempre ser contada.
sexta-feira, 29 de maio de 2009
terça-feira, 26 de maio de 2009
Do outro lado da mira.
João acordou a meio da noite. A pele suada e fria, as mão tremendo e o coração a bater. Saiu da cama devagar, não queria acordar a mulher que dormia com ele naquela noite. Precisava de beber água e dirigiu-se ao frigorífico. Não era capaz de beber água que não fosse gelada. A garganta seca exigia-o. Enquanto enchia lentamente o copo, a sua mente fazia-o reviver o que se tinha passado umas horas antes. A respiração ofegante, a adrenalina de perseguição, o braço esticado empunhando a pistola, o coração a bater lentamente, o premir do gatilho exactamente num espaço entre dois batimentos cardíacos, o barulho abafado do tiro, o sangue projectado contra a parede, o morto com a cabeça estilhaçada. "Até parece que é a primeira vez que o fazes..." pensou de si para si. Já não consegui lembrar-se de quantos "clientes" tinha despachado, mas também não era importante. Fazia o trabalho, era bem pago, nunca seria apanhado.
Não conseguia dormir, por isso foi para a sala ver televisão. Acendeu as luzes com um bater de palmas. Vivia numa casa grande, com todos os luxos mas essencialmente prática. Ligou o enorme ecrã LCD e afundou-se no sofá branco de genuína pele, design italiano. Nada de novo nas notícias. A crise, o desemprego, os crimes dos multibancos, um homicídio, um corpo nas ruas. Os seus lábios desenharam um sorriso misto de orgulho e escárnio. Nada sobre o seu trabalho. Resolveu que precisava de dormir. Apagou a televisão e foi até ao pequeno ginásio. O exercício ajudava-o a relaxar e logo, a adormecer. O seu tronco era bem trabalhado, os abdominais definidos, o peito firme de ombros largos e braços robustos. Contudo havia várias cicatrizes que revelavam a dureza da sua linha de trabalho. Uma cicatriz grande e linear que começava junto ao umbigo e terminava quase junto à coluna denunciava uma intervenção cirúrgica demorada e que, provavelmente o colocara em risco de vida, como aliás o devia ter feito a situação que levou a essa intervenção. Depois havia sinais de lesões por balas e arma branca. Correu uns largos minutos no tapete e passou para os abdominais. A sua cabeça continuava povoada com as imagens do seu último trabalho. Afundado nos seus pensamentos, não se apercebeu da mulher que entrara no ginásio. Estava completamente nua e sorria "Se querias gastar energias, há outras maneiras de o fazer... juntos!". Ele levantou-se e disse-lhe secamente "Por favor... vou tomar um banho." Enquanto o via percorrer o corredor ela não conteve um comentário em voz baixa: "Mas porque raio precisa um gerente bancário de tanto exercício?".
quinta-feira, 21 de maio de 2009
Parabéns Sr. Enfermeiro!
Chamem-me excêntrica, mas o meu comentário ao grande final da Alzira vem em forma de Post. Às vezes parece que me esqueço que posso escrever aqui mais do que histórias. Por isso hoje decidi escrever um elogio. Acho que é merecido.
Miguel seu enfermeiro tantas vezes desanimado que apela ao espírito criativo para que lhe valha:
Eu acho que ele te valeu.
Tens-te vindo a revelar de história para história como uma espécie de criativo nato que não cansa de surpreender. Mas acho que este desfecho com cheiro a enxofre superou todos os outros.
Muito embora a imagem da Alzira a sexar com uma garrafa térmica vá povoar os meus pesadelos nos próximos tempos, foste mais do que criativo. Ou então tens uma mente diabolicamente retorcida e andas a cheirar éter pelos corredores do hospital :)
PARABÉNS!
E já sabes, quem lança a próxima história és tu.
Miguel seu enfermeiro tantas vezes desanimado que apela ao espírito criativo para que lhe valha:
Eu acho que ele te valeu.
Tens-te vindo a revelar de história para história como uma espécie de criativo nato que não cansa de surpreender. Mas acho que este desfecho com cheiro a enxofre superou todos os outros.
Muito embora a imagem da Alzira a sexar com uma garrafa térmica vá povoar os meus pesadelos nos próximos tempos, foste mais do que criativo. Ou então tens uma mente diabolicamente retorcida e andas a cheirar éter pelos corredores do hospital :)
PARABÉNS!
E já sabes, quem lança a próxima história és tu.
Eu quero matar a minha mulher: agora sim, o fim.
Prudêncio chegou ao hospital já cadáver. O comentário mais profundo que fizeram à sua chegada foi "Porra que cheira a porco queimado!". Nem na morte aquele homem parecia inspirar particular respeito ou admiração. Alzira estava zangada. "Maldito homem, nem morto me dá descanso... agora tenho que andar a caminho do hospital por causa dele. E o dinheiro que vai custar o enterro..." Ainda sugeriu ao médico que queimassem o corpo mirrado de Prudêncio juntamente com os lixos do hospital... sem sorte.
O enterro foi simples e solitário. A imagem fiel da vida do homem. Alzira, o padre e dois homens que costumavam trocar dois dedos de conversa com Prudêncio, que lá estiveram por compaixão do que por amizade. A alocução do padre acerca do morto foi interrompida com um "Despache lá isso. " disparado secamente por Alzira, que nem esperou que o caixão descesse à terra para se retira. Voltou para casa com um sorriso nos lábios "Enfim, livre! Livre daquele traste inútil, de um homem sem força da braguilha, um desgraçado que só me trouxe trabalho." Entrou em casa triunfante e inspirou profundamente. Abriu um sorriso (coisa rara!) que revelou a boca negra e com apenas três ou quatro dentes esburacados e amarelos. Sentiu o cheiro da cozinha queimada e amaldiçoou Prudêncio uma vez mais. Caminhou pesadamente pelo corredor cujas tábuas velhas e bolorentas cediam e rangiam a cada passo, observando os seus cacarecos de cristal e porcelana, os seus naperons poeirentos, as imagens de santos e quadros com paisagens ou naturezas mortas pendurados aleatoriamente pelas paredes e chegou ao quarto. Deitou-se exactamente a meio da cama, como se reclamasse finalmente para si o espaço partilhado durante tantos anos, e adormeceu.
Acordou com o sol da manhã a bater-lhe nos olhos e berrou: "PRUDÊNCIO! PRUDÊNCIO? Raio do hom..." a lembrança da morte do marido bateu-lhe inesperadamente forte demais. Levantou-se e foi preparar o pequeno-almoço. Na cozinha semi-destruída preparou um café e um naco de pão torrado. A cada movimento se lembrava dele. Bateu com a palma da mão na testa "Esta agora... acorda mulher!" Saiu de casa e logo os vizinhos se apressaram a apresentar as suas condolências que se revelaram bem mais dolorosas do que ela imaginara. Passou um dia triste e cinzento. Prudêncio fazia-lhe falta. Não podia dizer que o amava. Nunca o amara, mas foram anos de convivência e partilha e ele nunca a tratara mal. Prudêncio era o seu animal de estimação, o seu cãozinho irrequieto a quem pontapeava e dava com o jornal, mas que nunca lhe rosnava e voltava sempre para ela. Além de que, sempre lhe dava algum prazer... não que fosse um animal sexual mas ela, embora não o confessasse, nunca tinha deixado de ter um orgasmo. Fraquitos é certo, mas mesmo assim vinha-se sempre! Ao regressar a casa sentiu-se sozinha. Aquele velho T1 parecia-lhe agora enorme e os seus passos pareciam agora ecoar por toda a casa. Ao jantar, deixou praticamente toda a comida no prato. Não tinha apetite e cozinhar nunca tinha sido o seu forte. Prudêncio tratava disso por ela e, diga-se que os pratos vinham sempre bem apaladados.
Sentou-se ao sofá a ver a novela. Os actores principais beijavam-se loucamente enquanto se despiam e, atabalhoadamente, se dirigiam para o quarto. "Ai, Prudêncio, Prudêncio. Sempre me fazes alguma falta afinal..." suspirou. A imagem de Prudêncio assaltou-lhe a mente. Aquela postura sempre submissa e com medo de levar um tabefe, as mão entrelaçadas junto ao peito, os olhinhos de cachorro medroso atrás daqueles óculos que só aumentavam a pena, os dentinhos de ratinho a espreitarem por cima dos lábios fininhos despertaram-lhe saudade. E um arrepio no fundo das costas. Alzira sabia o que isso significava mas Prudêncio não estava ali para lhe apagar o fogo "nos entrefolhos", como ela dizia. Fechou os olhos enquanto pensava nele e, acto contínuo, afundou a sua grande manápula por entre a gordura das coxas que sempre lhe faziam lembrar aquele boneco que tinha recebido de uma oficina, há uns anos atrás. Afastou as pernas e colocou a mão por cima da "boca do mundo". Estava quente e molhada. Estremeceu ao enfiar dois dedos dentro de si mesma mas logo recuou. "Ai meu Deus! Que grande pecado... perdoai-me Senhor", benzeu-se mas o toque daquela mão húmida a cheirar a luxúria carnal só lhe aumentou a vontade. Voltou a colocar a mão entre as coxas que ondulavam ao ritmo do movimento frenético da mão. Esfregava vigorosamente e enfiava os dedos no seu buraco. Primeiro um, gemeu. Depois outro. O terceiro fê-la abafar um pequeno grito. "Só mais um..." e os quatro dedos penetravam nas suas mais recônditas entranhas. "Prudêncio... quem me dera que aqui estivesses... sempre me preenchias mais que isto, se bem que nunca to disse... ai, Prudêncio..." ofegante e suada, decidiu que as suas mãos não eram suficientes para lhe satisfazer o desejo. Esfregando-se enquanto andava pela casa, procurava algo que lhe enchesse as medidas do prazer. Abriu gavetas e armários, no quarto, na sala, na casa de banho. Percebeu o que precisava assim que o viu: uma velha garrafa térmica que jazia esquecida no fundo de um armário da cozinha. Aquela tampa em forma de bola-cortada-a-meio tinha um aspecto sugestivo. Não pode deixar de sorrir ao constatar que aquela garrafa era a cópia exacta da picha circuncidada de Prudêncio, muito embora em ponto grande. "Tanto melhor!" pensava enquanto de deitava no sofá com as pernas o mais afastadas que era capaz. O frio da garrafa ao penetrar naquele túnel quente arrepiou-a mas logo passou. Começou devagar, a medo, nunca tinha feito aquilo e temia magoar-se mas as dimensões e o laxismo dos seus músculos pélvicos logo lhe exigiram mais vigor. Acelerou os movimentos e esforçou-se por se lembrar da cara de Prudêncio quando fodiam como cães. Lembrou-se e urrou de prazer. Mais rápido e ela sentia o desfecho a aproximar-se com a imagem de Prudêncio a aumentar de nitidez na sua imaginação. Os olhos pequenos fechados vigorosamente, pequenas gotas de suor a escorrerem pela careca e os lábio unidos com os dentes a morderem o inferior. Alzira combinou os movimentos de vai-vem da garrafa com movimentos circulares e capitulou! Gritou de prazer como nunca o tinha feito e veio-se. O seu corpo contorceu-se, tremeu e caiu do sofá. A luz apagou-se.
Alzira acordou num local desconhecido. Olhou em volta e não viu nada mais que montanhas despidas de verde. Estava numa escarpa, de um lado o vazio e do outro a entrada para uma caverna. À porta da caverna reconheceu um vulto magro e curvado sobre si mesmo. Poderia ser ele? Avançou em direcção à caverna, lentamente, como se receasse o seu destino. O vulto saiu das sombras. "Prudêncio?"
"Sim Alzira. Sou eu."
"Onde estamos? Que cheiro é este? Prudêncio... perdoa-me... senti a tua falta."
"Eu sei Alzirinha. Este cheiro de que falas é enxofre e esta é a nossa nova casa. Vamos entrar?"
"Sim Prudêncio. Vamos entrar!"
"Isto é uma descida longa e íngreme... não te assustes."
Avançaram juntos em direcção às trevas.
Uns dias mais tarde uma vizinha foi ver da Alzira. Não era normal tantos dias sem sair, por muito que estivesse de luto pelo marido. Encontrou-a morta no chão, pernas escancaradas com uma garrafa térmica enfiada nas partes baixas. O falatório não tardou e deu conversas durante algumas semanas. O tempo para a autópsia revelar a causa de morte: ruptura de aneurisma cerebral com hemorragia maciça após esforço e tensão muscular intensa. Morte imediata.
sexta-feira, 15 de maio de 2009
Eu Quero Matar a Minha Mulher - Fim (ou nem por isso?)
Prudêncio passou a tarde inteira a pesquisar formas de o inodoro monóxido de carbono penetrar nas vias respiratórias da vaca que dormia no quarto, ainda amarelada pelo veneno fora de prazo. Desse por onde desse, aquele animal teria que sair da sua vida. Tudo à sua volta desaparecera para dar lugar apenas ao propósito de matá-la. Nada mais importava. Vê-la morta, de língua pendente, pupilas dilatadas. Ver-se livre da voz, da pele pegajosa, do cheiro húmido daquele traste era a motivação para continuar a respirar.
Não falharia. Observou o esquentador, comprado há pouco tempo e por isso, pouco atreito a avarias mortais. Provocar-lhe uma avaria certamente deixaria rasto. Teria que ser de outra forma. Abriu e fechou os bicos do velho fogão, a porta do forno e enquanto ligava o gás de um dos bicos foi levantado do chão pela voz que o enojava até às entranhas.
- A minha canja seu imprestável? É preciso ir aí aviar-te seu paneleiro?
Prudêncio respondeu com a voz mais serena que conseguiu:
- A canja está a cozinhar!!! – Mal sabes tu a canja que te vou fazer minha vaca, ruminou de si para si.
Enquanto pensava que seria a última vez que aquela megera gritaria ordens na sua direcção sentiu um forte murro na nuca. Alzira levantara-se desconfiada e ao verificar que não havia canja ao lume praticamente espumava de raiva.
- Seu inútil careca de merda que nem uma porra de uma água com frango e arroz metes no lume! És pior que uma galinha depenada. A minha canja?!!!!!! Queres-me matar?!!!! Não vês que estou desarranjada da tripa? - Um forte ruído vindo do interior da gigantesca pança da mulher deu o toque final ao seu discurso. Ela continuava pontapeá-lo, a esbofeteá-lo, como se isso de alguma forma a pusesse melhor.
- Ai pára, pára. Falta-me o frango. Não queres canja sem frango, pois não? Deixa-me sair que o vou comprar! Ai! A voz de Prudêncio era de puro desespero.
As lágrimas de humilhação e dor caíam sobre o rosto oleoso de Prudêncio. Alzira olhava-o implacável:
- Se demoras mais de 15 minutos a ires ao talho do Vítor e voltares, vou-te buscar e vens de rastos.
Prudêncio virou costas e fugiu porta fora. As lágrimas mal o deixavam enxergar o caminho à sua frente. Sentou-se no banco de jardim e chorou de puro ódio. O tempo passou e à medida que se ia acalmando um pânico crescente bem no fundo do pensamento saltou para a frente dos seus olhos. Com a confusão, deixara o bico do gás ligado. Alzira certamente nem notaria o gás a espalhar-se pelo apartamento. Meu Deus, o que é que fora fazer? Não podia ser assim. Não era o que tinha programado. A canja, ela tinha que comer a canja. A culpa seria dele, o que faria com tamanha culpa? O que faria sem Alzira?
Levantou-se do banco de jardim e cego de pânico correu até ao velho prédio onde sempre morara com aquela que era, apesar de tudo, a sua mulher. Tinha que a salvar.
Enquanto subia as escadas de madeira gritava:
- Alzira eu estou a ir, não te enerves comigo! Eu não fiz por mal!
Abriu a porta do apartamento mal iluminado e sem pensar duas vezes ligou o interruptor da luz. A última coisa que ouviu foi um enorme estrondo que o ensurdeceu e uma luz tão intensa que o cegou para sempre.
Enquanto era consumido pelas chamas que engoliam a casa juntamente com o seu pequeno corpo. Conseguiu ainda ouvir as vozes dos bombeiros e sobre as vozes na rua, uma que se impunha sobre todas as outras:
- Aquele traste pegou fogo à casa.
Foram estas as últimas palavras que ouviu antes de partir em direcção à luz reconfortante e serena.
Uma frase saiu ainda da sua boca retorcida pelas chamas:
- Desculpa Alzira, não fiz por mal...
Não falharia. Observou o esquentador, comprado há pouco tempo e por isso, pouco atreito a avarias mortais. Provocar-lhe uma avaria certamente deixaria rasto. Teria que ser de outra forma. Abriu e fechou os bicos do velho fogão, a porta do forno e enquanto ligava o gás de um dos bicos foi levantado do chão pela voz que o enojava até às entranhas.
- A minha canja seu imprestável? É preciso ir aí aviar-te seu paneleiro?
Prudêncio respondeu com a voz mais serena que conseguiu:
- A canja está a cozinhar!!! – Mal sabes tu a canja que te vou fazer minha vaca, ruminou de si para si.
Enquanto pensava que seria a última vez que aquela megera gritaria ordens na sua direcção sentiu um forte murro na nuca. Alzira levantara-se desconfiada e ao verificar que não havia canja ao lume praticamente espumava de raiva.
- Seu inútil careca de merda que nem uma porra de uma água com frango e arroz metes no lume! És pior que uma galinha depenada. A minha canja?!!!!!! Queres-me matar?!!!! Não vês que estou desarranjada da tripa? - Um forte ruído vindo do interior da gigantesca pança da mulher deu o toque final ao seu discurso. Ela continuava pontapeá-lo, a esbofeteá-lo, como se isso de alguma forma a pusesse melhor.
- Ai pára, pára. Falta-me o frango. Não queres canja sem frango, pois não? Deixa-me sair que o vou comprar! Ai! A voz de Prudêncio era de puro desespero.
As lágrimas de humilhação e dor caíam sobre o rosto oleoso de Prudêncio. Alzira olhava-o implacável:
- Se demoras mais de 15 minutos a ires ao talho do Vítor e voltares, vou-te buscar e vens de rastos.
Prudêncio virou costas e fugiu porta fora. As lágrimas mal o deixavam enxergar o caminho à sua frente. Sentou-se no banco de jardim e chorou de puro ódio. O tempo passou e à medida que se ia acalmando um pânico crescente bem no fundo do pensamento saltou para a frente dos seus olhos. Com a confusão, deixara o bico do gás ligado. Alzira certamente nem notaria o gás a espalhar-se pelo apartamento. Meu Deus, o que é que fora fazer? Não podia ser assim. Não era o que tinha programado. A canja, ela tinha que comer a canja. A culpa seria dele, o que faria com tamanha culpa? O que faria sem Alzira?
Levantou-se do banco de jardim e cego de pânico correu até ao velho prédio onde sempre morara com aquela que era, apesar de tudo, a sua mulher. Tinha que a salvar.
Enquanto subia as escadas de madeira gritava:
- Alzira eu estou a ir, não te enerves comigo! Eu não fiz por mal!
Abriu a porta do apartamento mal iluminado e sem pensar duas vezes ligou o interruptor da luz. A última coisa que ouviu foi um enorme estrondo que o ensurdeceu e uma luz tão intensa que o cegou para sempre.
Enquanto era consumido pelas chamas que engoliam a casa juntamente com o seu pequeno corpo. Conseguiu ainda ouvir as vozes dos bombeiros e sobre as vozes na rua, uma que se impunha sobre todas as outras:
- Aquele traste pegou fogo à casa.
Foram estas as últimas palavras que ouviu antes de partir em direcção à luz reconfortante e serena.
Uma frase saiu ainda da sua boca retorcida pelas chamas:
- Desculpa Alzira, não fiz por mal...
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