Prudêncio passou a tarde inteira a pesquisar formas de o inodoro monóxido de carbono penetrar nas vias respiratórias da vaca que dormia no quarto, ainda amarelada pelo veneno fora de prazo. Desse por onde desse, aquele animal teria que sair da sua vida. Tudo à sua volta desaparecera para dar lugar apenas ao propósito de matá-la. Nada mais importava. Vê-la morta, de língua pendente, pupilas dilatadas. Ver-se livre da voz, da pele pegajosa, do cheiro húmido daquele traste era a motivação para continuar a respirar.
Não falharia. Observou o esquentador, comprado há pouco tempo e por isso, pouco atreito a avarias mortais. Provocar-lhe uma avaria certamente deixaria rasto. Teria que ser de outra forma. Abriu e fechou os bicos do velho fogão, a porta do forno e enquanto ligava o gás de um dos bicos foi levantado do chão pela voz que o enojava até às entranhas.
- A minha canja seu imprestável? É preciso ir aí aviar-te seu paneleiro?
Prudêncio respondeu com a voz mais serena que conseguiu:
- A canja está a cozinhar!!! – Mal sabes tu a canja que te vou fazer minha vaca, ruminou de si para si.
Enquanto pensava que seria a última vez que aquela megera gritaria ordens na sua direcção sentiu um forte murro na nuca. Alzira levantara-se desconfiada e ao verificar que não havia canja ao lume praticamente espumava de raiva.
- Seu inútil careca de merda que nem uma porra de uma água com frango e arroz metes no lume! És pior que uma galinha depenada. A minha canja?!!!!!! Queres-me matar?!!!! Não vês que estou desarranjada da tripa? - Um forte ruído vindo do interior da gigantesca pança da mulher deu o toque final ao seu discurso. Ela continuava pontapeá-lo, a esbofeteá-lo, como se isso de alguma forma a pusesse melhor.
- Ai pára, pára. Falta-me o frango. Não queres canja sem frango, pois não? Deixa-me sair que o vou comprar! Ai! A voz de Prudêncio era de puro desespero.
As lágrimas de humilhação e dor caíam sobre o rosto oleoso de Prudêncio. Alzira olhava-o implacável:
- Se demoras mais de 15 minutos a ires ao talho do Vítor e voltares, vou-te buscar e vens de rastos.
Prudêncio virou costas e fugiu porta fora. As lágrimas mal o deixavam enxergar o caminho à sua frente. Sentou-se no banco de jardim e chorou de puro ódio. O tempo passou e à medida que se ia acalmando um pânico crescente bem no fundo do pensamento saltou para a frente dos seus olhos. Com a confusão, deixara o bico do gás ligado. Alzira certamente nem notaria o gás a espalhar-se pelo apartamento. Meu Deus, o que é que fora fazer? Não podia ser assim. Não era o que tinha programado. A canja, ela tinha que comer a canja. A culpa seria dele, o que faria com tamanha culpa? O que faria sem Alzira?
Levantou-se do banco de jardim e cego de pânico correu até ao velho prédio onde sempre morara com aquela que era, apesar de tudo, a sua mulher. Tinha que a salvar.
Enquanto subia as escadas de madeira gritava:
- Alzira eu estou a ir, não te enerves comigo! Eu não fiz por mal!
Abriu a porta do apartamento mal iluminado e sem pensar duas vezes ligou o interruptor da luz. A última coisa que ouviu foi um enorme estrondo que o ensurdeceu e uma luz tão intensa que o cegou para sempre.
Enquanto era consumido pelas chamas que engoliam a casa juntamente com o seu pequeno corpo. Conseguiu ainda ouvir as vozes dos bombeiros e sobre as vozes na rua, uma que se impunha sobre todas as outras:
- Aquele traste pegou fogo à casa.
Foram estas as últimas palavras que ouviu antes de partir em direcção à luz reconfortante e serena.
Uma frase saiu ainda da sua boca retorcida pelas chamas:
- Desculpa Alzira, não fiz por mal...
Há quem goste delas curtas, há quem as aprecie mais longas, mas para nós o tamanho não importa, uma história merece sempre ser contada.
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7 comentários:
Vaso ruim não quebra, é bem verdade!!!
Estava a gostar desta história, já tinha alinhadas várias maneiras bem retorcidas de matar a Alzira. Mas pronto, foi-se o Prudêncio, literalmente consumido pelas chamas da culpa...
Bom trabalho Ana!!
Miguel podes sempre escrever mais um episódio. Era o desafio supremo saires-te desta. Aliás, estás desafiado. És tu quem vai escrever o último episódio. Vou mudar o título deste...
Olha, olha... que grande batata!! Como é que agora o Prudêncio vai matar a besta?!?! Com um susto do além? Esta agora...
Me aguarde...
UI UI... fico a espera.
Pensei mesmo que o Prudêncio ia matar a asquerosa da mulher, apesar de achar que depois se iria arrepender! Agora olha...foi-se o Prudêncio! Boa reviravolta!!!
L espera. O Miguel é sempre capaz de uma boa surpresa :)
Maria não desistas já. Parece que afinal a história ainda não acabou...
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