Há quem goste delas curtas, há quem as aprecie mais longas, mas para nós o tamanho não importa, uma história merece sempre ser contada.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O Inverno e a Aldeia.

Ao meu amado filho, ainda por nascer.
Meu filho, após uma longa e solitária viagem de três dias, a pé por entre os montes e as matas que os habitam, eis que me encontro na serra sobranceira a S. Vicente. Quero genuinamente sentir-me feliz, alegre e revigorado pela visão da minha terra, da nossa terra, aquela onde conheci a tua mãe e onde foste concebido mas não sinto nada. Nada. Será talvez porque, na verdade, não vejo o casario? Todas as casas, desde as mais próximas aos campos até às ladeiras à Igreja estão perdidas no meio do nevoeiro cerrado. Só se vê a torre da Igreja, como se o Senhor estivesse a assistir, impávido e sereno, ao que acontece dentro do negrume. Será possível que Deus nos tenha abandonado?
Nem sei porquê esta interrogação que me invade. Mas sinto-me vazio, frio, gelado por dentro. O meu coração, que me encheu de força para encontrar o meu filho, está agora parado. Que coisa é esta que me invade? Onde foi a alegria que trouxe até aqui? E porque não sou capaz de entrar na minha terra, no pedaço de mundo que viu nascer? O silêncio está por todo o lado. Não se ouve nada. Nem pessoas, nem os cães, nem os mugidos das vacas e os seus badalos, nem o sino da Igreja, nem as crianças a correr pelo empedrado das ruas, nem os pássaros a piar ao final da tarde. Mas o que mais me impressiona é esta indiferença ao facto de estar a pouca distância de ti, meu filho. A minha mente é constantemente invadida por imagens de dor e sofrimento. Não que tu estejas a sofrer mas que... sejas tu o causador do desespero. Vejo imagens de um homem, adulto, que ri enquanto bate e humilha outros homens e mulheres. Ele ri e eu oiço o seu riso, o seu gargalhar ecoa na minha cabeça e eu sei, eu sei que esse homem é o meu filho. Esse homem serás tu.
Mas que pai serei eu, que homem cria o seu filho para que ele se torne no canalha que me invade a mente? Onde se esconderão os meus erros? Falho na minha missão de pai mesmo antes do teu nascimento, meu filho. Perdoa-me, se puderes. E este maldito vento que se faz sentir no monte onde me encontro. Maldito que vem das partes do nevoeiro e parece trazer as preces da gente da terra, as mesmas preces que se ouvem nos funerais, lentas, murmuradas que parecem empurrar o morto para além dos sete palmos da cova que lhe talharam. Sempre me arrepiou esse lamurio das carpideiras que fazem da dor dos outros o seu entretém nas noites passadas sentadas nos frios bancos de pedra da casa mortuária da Igreja, enquanto ensaiam choros fingidos e gritos de dor. Cada uma na sua vez, encadeadas como num coro. São esses os sons que trás o vento, meu filho. E, como sempre, a minha pele arrepia-se de angústia.
A noite cai. É hora de me preparar para a caminhada que me levará a sentir-te na barriga da tua mãe. E é curioso que seja a noite a trazer-me uma alegria. Vejo ao longe uma luz, no meio do nevoeiro! Uma luz que parece ténue mas que deve ser forte, para conseguir trespassar o espectro negro que rodeia a aldeia. Uma luz que ondula, como as árvores ao vento, como se estivesse a assinalar onde tu estás, meu filho. Conheço bem a aldeia, e ali, de onde a luz parece chamar-me é a casa da tua mãe, Joana. Bem perto fica a torre da Igreja, solene, alta, distante. Dela só me chega angústia.
Se eu perecer, rogo a quem encontrar a minha velha carcaça que entregue esta carta ao meu filho, o filho de Júlio e Joana de S. Vicente da Lua.
Este episódio é dedicado à Nuvem. Pela sua incansável fidelidade, obrigado!
(Já podes ir falar com o Pai Natal!)

2 comentários:

Nuvem disse...

Já me ri a perder Miguel

vou já falar com o Pai Natal!!!!
E vou dizer que traga tudo o que pediste e mesmo aquilo que ainda nem pediste :)

beijinhos

Ana C. disse...

Muito bom Miguel e gosto de ver que sabes ir buscar inspiração a um futuro filho por nascer :)