S. Vicente da Lua, 22 de Novembro de 1951
Página número 29 do Diário Pessoal de Joana Espinho
Querido Diário
Hoje chorei muito. Chorei como não chorava desde que me lembro. O vigário apareceu aqui ontem à noite e cedi ao seu abraço misericordioso. É o único que não me vira a cara na aldeia, que não me julga, quando é certo que cometi mais do que um pecado capital.
Todo o ambiente estranho que nos envolveu na capela se dissipou aqui em casa. Orámos com muito fervor, lemos passagens da Bíblia que pareciam escritas para mim, conversámos sobre o sentido das coisas e o Vigário pareceu mais sereno do que ontem de manhã. Pediu-me para ver as palmas das mãos, mas nada encontrou. Não lhe falei da estranha marca sobre o meu ventre que aparece e desaparece ao sabor do dia e da noite.
Deixou-me Água Benta para que me benzesse todas as manhãs e assim o vou fazer, bem como passá-la sobre a marca rosada no bucho, pois sei que nesta altura apenas Ele me pode valer.
Hoje os meus alunos pareceram menos cruéis e, apesar de no caminho de regresso a casa, alguns deles me terem seguido e jogado pedras, foram menos os que participaram no “linchamento”.
Estou convencida de que ouvem em casa aquilo que me gritam pelo caminho e certa de que quando me chamam puta nem sabem o que essa palavra quer dizer.
Segurei o meu rosário com todas as forças e caminhei de cabeça erguida, o que pareceu deixá-los um pouco atordoados, habituados como estão a ver-me gritar e perder as estribeiras.
Pensei muito no Júlio e em como seria bom tê-lo aqui perto de mim, mas não posso, não devo ceder à tentação. Para o bem e para o mal já tomei a minha decisão, vou entregar esta criança quando ela vir a luz do dia. Certa de que será mais feliz longe daqui, deste negrume que nos afunda a todos.
Ainda não falei com o Vigário sobre esta minha decisão. Talvez ele me possa ajudar se for um menino, dá-lo para os padres criarem no Mosteiro das Levadas. Se for menina eu mesma a entregarei num convento e quem sabe não pedirei para ficar também eu em voto de clausura.
Enquanto te escrevo escuto os ruídos lá fora e sei que vou passar mais uma noite em claro, possessa de horror. As cantilenas e preces na língua que desconheço parecem munidas de mais vozes a cada noite que passa. Quero encher-me de coragem para espreitar lá para fora, mas ainda não consigo. Chego a temer pela minha vida. Sinto que tudo piora todos os dias. Tudo menos a minha fé que foi resgatada dos confins de mim mesma pelo meu santo Vigário.
Vou ficar por aqui, pois as velas pouca serventia me dão. Esmorecem e apagam-se sempre à mesma hora. À hora dos cânticos. Sei que eles se aproximam, pois as velas já pouca chama queimam. Amanhã volto a ti querido Diário, até lá rezo para passar desta noite.
Há quem goste delas curtas, há quem as aprecie mais longas, mas para nós o tamanho não importa, uma história merece sempre ser contada.
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
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3 comentários:
como sempre Ana C..... mutio bom!!!
beijinhos
Estava a ler e imagens formavam-se na minha mente, de uma mulher assustada mas, ainda assim corajosa!! Num ambiente muuuito hostil...
Muito bom!!
Adoro esta tua escrita! Está spotless!
Senti o aperto no peito que a Joana sente, ouvi os murmúrios e vi a chama da vela a esmorecer.
Muito, mesmo muito bom!
;)
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