AS BLOGONOVELAS

Há quem goste delas curtas, há quem as aprecie mais longas, mas para nós o tamanho não importa, uma história merece sempre ser contada.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

A Outra

É ela que o vê doente e que coloca a mão fria no seu rosto febril. É ela que o vê acordar e que dorme sobre o colchão moldado pelo corpo dele, havendo lados definidos para cada um. É ela que anda de mão dada com ele na rua e que se deixa envolver pela cintura, sem ter que se esconder dos públicos afectos. É ela que cozinha para ele. É ela que ouve a sua chave na porta ao final do dia e o vê descalço pela casa, com a intimidade suposta. É ela que se arroga dele. É ela que lhe grita e que o inferniza, sem medo que ele não regresse mais. É ela que não tem que ser perfeita, pois não lhe é exigida perfeição. É ela que o vê negro e menos belo. Pois ele mostra-se a ela negro e menos belo. Foi ela que lhe deu filhos e que partilhou com ele os primeiros passos, as primeiras palavras, as primeiras conquistas. Foi ela que lhe ofereceu um pedaço da continuação deles. Ela perdurou-o e guardou-o no seu ventre, devolvendo-lhe em dobro o que ele plantou. Foi ela que o teve sempre, mesmo quando ele estava nos meus braços, mesmo quando eu julgava estar na posse do melhor dele, dos recantos que mais ninguém conhecia, era ela que o tinha sempre. Eu nunca pude pensar em Sempre. Com ele nunca pude ser imperfeita, nem quotidiana. Com ele nunca partilhei abraços públicos. Apenas olhares furtivos e pernas entrelaçadas debaixo da mesa. Com ele nunca fui como ela foi. Nunca consegui deixar de amá-lo, pois nunca tivemos lados negros, nem desgastes de rotina. Ele imaginava-me tudo o que queria e eu correspondia, mesmo sabendo que não o era de todo. Deixava-o pensar-me assim, como se pensa e se interpreta uma pintura que não se move, sem vida. Mas eu nunca fui a mulher fantástica que representava. Aquela puta tinha o quotidiano e eu chorei pelo quotidiano que não tive. Aquela puta queria o que eu tinha, queria o lado dele intempestivo, criador, mágico, sublime e eu queria as torradas com manteiga e o pequeno-almoço a dois. Aquela puta pôde chorar o seu corpo inerte, pôde velá-lo e tocar o seu rosto frio e plácido pela última vez. Aquela puta pôde, enfim, encerrá-lo. Eu não pude. Não escutei a terra sobre o caixão de pinho, não fui consolada, nem abraçada, nem beijada pela minha perda, pois a perda foi dela. Apenas dela. Ela é que era dele. Apenas ele sabia de mim. Apenas ele poderia imaginar o que seria perdê-lo, apenas ele poderia consolar-me pela sua própria perda, mas ele não está mais aqui para me limpar as lágrimas e eu choro por aquela puta e por mim. Choro.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Mais de Corpo que de Alma

- Eu nunca fiz isto antes.
- O quê, foder?
- Parvo.
Ele afasta a pequena mecha de franja que lhe cobre o olhar e sorri.
- Desculpa. O que é que nunca fizeste antes?
- Conhecer um homem ao jantar e acordar com ele para o pequeno-almoço.
- E?
Ele beija-a sem a brusquidão da noite anterior. É um beijo novo, renovado pela manhã de sol que entra pela janela dentro.
- E tenho a cabeça a mil. Fiz bem, fiz mal, vou-me arrepender, vou bater com a cabeça nas paredes. Vais-me ligar, não me vais ligar, gostaste, odiaste. No fundo, no fundo, achaste que tenho as mamas demasiado pequenas, o rabo flácido e…
- Falas sempre tanto?
- Que sou uma chata do caraças. Falo pelos cotovelos, ou fico completamente muda. Enfim, vais-me achar esquizofrénica, vais sair por aquela porta e nunca mais vais pensar na nossa noite.
- Qual é o mal das mamas pequenas?
- Fazes parte dos 3% da população masculina que não gosta de mamas até aos joelhos?
Ele passa a mão ao de leve sobre os lábios dela e desce até aos dois pequenos seios, firmes e espetados na sua direcção.
- Gosto das tuas.
Ela sorri. Ele sorri.
- Chega-te?
- Chega-me. Sou estupidamente pouco exigente. A cada ano que passa, baixo a fasquia.
- Por isso é que acabaste na cama comigo.
Ela olha aquele homem pouco musculado, não muito alto, com a pele demasiado branca pela falta de sol e acha que, de alguma estranha forma, ali tudo é equilíbrio. Os imensos olhos castanhos, a boca rasgada e os dentes perfeitos, compensam o nariz finamente espartano. O tom da sua voz enche todo o espaço que sobra entre eles e até o seu hálito quente, com o resto do vinho da noite anterior, é estranhamente agradável.
Ela roda na cama e coloca-se sobre ele, envolvendo-o com todo o seu corpo. Ficam abraçados, imóveis, sentindo apenas o que é de um e o que é do outro. O telefone toca na sala. Ela não ousa mover-se. Sente-se dona daquele momento. Ele fecha os olhos e deixa-se ficar sob o cheiro, por dentro do calor daquela mulher comum, que transformou a sua noite numa rajada de emoções que desconhecia.
- Gosto do teu cheiro.
- Também gosto do teu.
Beijam-se e olham-se de novo, como se quisessem gravar-se na memória um do outro para sempre.
Ele empurra-a com suavidade, na direcção do lençol amarrotado e quente e procura-a por dentro.
Os beijos prosseguem, nem depressa, nem devagar. Ao ritmo que tem que ser. Não há ainda amor, nem nada de profundo. Mas há a possibilidade. Há tudo o que poderá ser e que eles esperam que seja.
Ela sussurra-lhe ao ouvido:
- Eu fico com o teu número…
- Porquê?
- Não quero ficar à espera que me ligues.
- Combinado…
Mas um som cavo e inconfundível toma conta daquela pequena divisão iluminada. Um som que não podem fingir não ter escutado. O último som que ela desejava ouvir tão cedo.
- Foste tu que te peidaste?

segunda-feira, 18 de julho de 2011

24 horas

3.45
O telefone tocou.
O relógio dizia que era de madrugada e ele soube que não era uma boa notícia. Carregou no minúsculo botão do telemóvel e esperou um acidente, uma morte, uma tragédia
Do outro lado uma voz transpirada murmurou-lhe que tinha um dia. Vinte e quatro horas para tentar modificar todos os dias atrás de si.
"Quais dias? Modificar o quê? Para quê?"
O silêncio revelou o final da chamada e ele tremeu.
3.52
Sentou-se na cama, suado, gelado, trémulo e reviu folha por folha, capítulo por capítulo, as páginas da sua vida até então.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

O Inverno e a Aldeia.

-JOANA! JOANA! ONDE ESTÁS??
Júlio corria desesperado pelas sombras de S. Vicente enquanto procurava pela casa de Joana. Apercebia-se de vultos que se escondiam nas sombras das esquinas e atrás das cortinas das janelas mas já nada temia. O seu coração empurrava-o para Joana. Encontrou a casa, finalmente. Entrou devagar, cuidadoso, não porque temesse algo mas porque queria apanhar quem quer que fosse que tivesse ousado tocar num só fio de cabelo da sua amada. Retesou os músculos quando viu um vulto curvado no chão, como se tentasse esconder-se mas deixando ver uma espécie de arma. Um bastão ou uma catana. Entrou de rompante e pontapeou fortemente o vulto agachado.
-FILHO DE UMA PUTA SARNENTA! ONDE EST.... Padre?! Oh meu deus, Padre?!?!?!
Júlio não acreditava no que estava perante si. O Padre arrefecia as pedras do chão com um crucifixo trespassando-lhe o peito. Branco, vazio, morto.
-Padre, padre, padre!!! JOANA! JOANA!
Júlio gritava pelo nome da sua mulher enquanto subia desastradamente as escadas.
-JOANA!! Joa... Não, por favor não. Deus meu Joana....
Ajoelhou-se perante o cadáver mutilado da sua Joana. Acariciou docemente a sua face que lhe gelou as mãos. As lágrimas que lhe molhavam a face estavam elas próprias geladas. Pegou-lhe nas mãos e afagou os golpes fundos nos seus pulsos. A barriga vazia de Joana denunciava o destino do filho de ambos. Como um autómato, Júlio percorreu todo o corpo de Joana, afastou-lhe as pernas. O fio da vida que saía de dentro dela estava rasgado. Como se tivesse sido mordido por um animal selvagem esfomeado. O sangue coagulado pegava-se a ele, ás suas mãos, infiltrava-se nas suas unhas, na sua face. O cheiro metálico do sangue em decomposição entrou pelo seu nariz, pelos seus poros e atingiu-o finalmente. Júlio não pode conter um vómito que largou num canto. Estava desesperado. O seu amor morto, o seu filho morto ou pior... não havia já esperança naquele coração. Até que...
O inconfundível choro de uma criança iluminou o seu coração, deu força aos seus músculos, iluminou a sala. Num salto Júlio desceu as escadas mesmo a tempo de ver um vulto curvado dobrando a esquina. Correu atrás dele.
-ANIMAL IMUNDO! VAIS MORRER PELAS MINHAS PRÓPRIAS MÃOS! PÁRA! DEVOLVE O MEU FILHO!!
O vulto desapareceu nas sombras e Júlio parou no meio do caminho. Dobrou-se e apanhou um objecto perdido pelo fugitivo: uma adaga brilhante, ensanguentada.
_Quem com ferros mata, com ferros morre, filha da puta bastardo de uma égua...

quarta-feira, 2 de junho de 2010

O Inverno e a Aldeia.

O estrondo da porta transfigurou o Padre, branco de terror, de medo, mas de excitação não contida e de sede de sangue. O mesmo sangue que fugia do corpo de Joana, ela também baça de cor e de vida. Agarrava a sua barriga com as mãos brotando sangue e com sangue era baptizado o seu filho, agora a sufocar sem o sangue vital da sua mãe. Um urro quase animal ressoa nas fragéis paredes daquela maldita casa...
"MONSTRO!!! UM DE NÓS MORRERÁ ESTA NOITE!!!
Um grito lancinante rasgou as entranhas da Joana que, deitada no chão, as pernas afastadas, agarrava-se aos joelhos. A dor transfigurava-a. Alberto optou por ignorar os gritos do vulto que pontapeava o escuro no andar de baixo. Ajoelhou-se frente a Joana e viu. O bebé vinha a caminho.
"Pai Nosso que estás no céu, santificado seja o nosso nome. Filho de Satanás, filho das sombras é chegada a tua hora.... NÃO PASSARÁS!!!!"
Elevou a adaga ensanguentada "Com o sangue da puta da tua mãe morrerás..." os murmúrios invadiam as sombras, ele podia ouvi-los. Susteve a respiração e...
"MORRE CABRÃO!!!" o vulto materializara-se sobre ele. Sentiu o peso de um homem em cima dele e rebolaram pelo chão que rangia desesperadamente. Debateu-se o padre como pode face a um monstro que desaparecia nas sombras. Esbracejava na esperança de acertar no vento. Sentiu um murro na face e depois um pontapé na cabeça. Sucumbiu rapidamente. Voltou-se para cima, um olho já fechado pelo sangue e viu o homem que o atacara, sujo, magro, ofegante...
"Tu... não sabes o que fazes... perdoo-te meu filho..."
Um pontapé em cheio no crucifixo que jazia no peito do padre fez ceder o frágil soalho. Alberto caiu com estrondo no chão de pedra. A cruz de cristo em cima da mesa trespassara-lhe o coração.
"Com Cristo morres cão sarnento."
Joaquim aproximou-se de Joana que contraía o abdómen, esvaída de sangue e de forças.
"Joaquim? És tu homem..."
"Sim, sou eu. Andei perdido sem saber quem era mas agora aqui estou."
"O meu filho?"
"Tomarei conta dele."
Joana respirou fundo e, enquanto gritava do fundo de si, expulsava do seu ventre o seu filho. Joaquim segurou no menino, limpou-o. Agarrou no cordão que alimentava ainda o bebé e cortou-o com os próprios dentes. O bebé chorava e Joaquim também.
"És o nosso salvador..."
Joana jazia, morta.
Júlio entrava na aldeia, vazia.

terça-feira, 1 de junho de 2010

O Miguel Corre

Corre, corre, corre, corre, corre, corre e não escreve nada...

sábado, 29 de maio de 2010

O Inverno e a Aldeia 27

- Escute Sr. Prior, escute. Consegue ouvi-los? - A voz de Joana não passava de um segredo ao ouvido do padre que se arrepiou até ao mais intimo de si.
- Do que é que falas Joana? Nada oiço. - Levou a mão à pequena adaga apertando-a com força enquanto proferia uma oração interior.
- As vozes, agora ainda sussurram, mas em breve serão gritos. O que é que eles querem de mim, porquê eu? Porquê?
Sem parar de rezar, Alberto segurou os dois pulsos de Joana, perante o horror desta e desferiu dois golpes bem fundos em cada um deles.
- Desapodera-te desta alma e desta aldeia tu que negro vestes, que negro és e que todas as línguas falas.
- O que é que me faz Padre?! - A expressão de choque dela deixava Alberto cada vez mais ansioso, mas não podia hesitar, não agora. E sem ter tempo de proferir uma oração golpeou novamente os pulsos da jovem desenhando uma cruz de sangue sobre a pele pálida.
Joana caiu de joelhos no chão, trémula, sem forças e no exacto momento em que a madeira sob o seu corpo range vergada ao peso, o Prior escuta os cânticos. Olha-a transido de terror, do olhar dela apenas a alma que lhe foge do corpo.
- Não mentias então? - Precipita-se para a janela, mas antes de conseguir enxergar o que quer que fosse um estrondo imenso toma conta de toda a divisão, alguém forçara a porta e entrara demolidoramente. Alguém que a escuridão não deixava ver...